sexta-feira, 19 de outubro de 2018

O Amante de lady Chatterley. D. H. Lawrence. «Passava sem as ver, e elas fixavam-na como se fosse uma figura de cera a andar. Quando Clifford tinha de lidar com elas, era altivo e desdenhoso…»

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«(…) Connie estava habituada a Kensington, ou às colinas da Escócia, ou às dunas do Sussex: esta era a sua Inglaterra! Com o estoicismo dos jovens, aceitou imediatamente a fealdade extrema, desumana dos Midlands de carvão e ferro. Era incrível, e não valia a pena pensar nisso. Das divisões sombrias de Wragby ela ouvia o chocalhar dos crivos na mina, o barulho do motor do guindaste, o estalido das camionetas em manobras e o desgarrado e enrouquecido apito das locomotivas de carvão. O silo do poço de Tevershall estava a arder havia anos, e custaria milhares para o extinguir. Por isso tinha de arder. E quando o vento soprava desse lado, o que era frequente, a casa enchia-se do cheiro pestilento da combustão sulfurosa do excremento da terra. Mas, mesmo nos dias sem vento, havia sempre o cheiro a qualquer coisa debaixo da terra: enxofre, ferro, carvão ou ácido. E até sobre as rosas do Natal se fixava a fuligem persistente e inconcebivelmente, como se fosse um maná negro de um céu maldito. Bem, assim era, estava escrito como todo o resto. Era terrível, mas para quê resistir? Não era possível, tinha de se continuar. A vida como sempre. No céu baixo e negro da noite havia manchas vermelhas de fogo que iluminavam, oscilavam, tornando-se nítidas, cresciam e contraíam-se, como queimaduras que fazem sofrer. Eram as fornalhas. A princípio fascinaram Connie, mas sentia ao mesmo tempo pavor, tinha a impressão de estar a viver debaixo da terra, depois habituou-se a elas. De manhã chovia sempre.
Clifford dizia que gostava mais de Wragby do que de Londres. Aquela região tinha uma determinação própria, inflexível, e os habitantes eram corajosos. Connie perguntava a si mesma se teriam algo mais: olhos e espírito não tinham com certeza. As pessoas eram tão pálidas, disformes, tristes e hostis como a terra. Só na dureza do seu dialecto e no malhar das botas mineiras, ferradas, quando em grupo se arrastavam no asfalto em direcção a casa vindos do trabalho, havia qualquer coisa de terrível e de misterioso. Não houve boas-vindas para o jovem fidalgo, nem festa, nem delegação, nem mesmo uma simples flor. Somente uma viagem húmida de carro através de uma estrada sombria e húmida, que desaparecia por entre as árvores tristes e reaparecia na vertente do parque, onde carneiros cinzentos e húmidos pastavam, até chegar ao cimo do monte, onde a casa estendia a sua fachada castanho-escura e a governanta e o marido esperavam, como caseiros indecisos, prontos a balbuciar as boas-vindas. Não havia comunicação entre Wragby Hall e a aldeia de Tevershall, nenhuma. Nem saudações, nem reverências. Os mineiros apenas olhavam, os comerciantes tiravam os bonés a Connie como a uma pessoa conhecida e baixavam a cabeça desajeitadamente a Clifford. E era tudo. Havia um abismo intransponível e um tranquilo ressentimento de parte a parte. Ao princípio, Connie sentiu-se afectada com os laivos constantes de ressentimento que a aldeia manifestava. Depois tornou-se insensível e passou a ser como um tónico aquilo com que era obrigada a viver. Ela e Clifford não eram de modo nenhum impopulares, mas pertenciam a uma espécie diferente da dos mineiros.
Havia um abismo intransponível, uma brecha indescritível, talvez como riem sequer exista no sul de Trent. Mas nos Midlands e o Norte industrial havia um abismo tal que era impossível uma comunicação. Fica no teu lugar que eu fico no meu! Uma estranha recusa do pulso comum da humanidade. No entanto, a aldeia gostava de Clifford e de Connie, num plano abstrato. Na carne, de cada lado era Deixem-me em paz. O reitor era um homem simpático, de cerca de sessenta anos, sempre ocupado com os seus deveres, e reduzido como pessoa quase a uma insignificância pelo silencioso deixem-me em paz dos aldeões. As mulheres dos mineiros eram quase todas metodistas, os mineiros não eram nada. Mas até o uniforme oficial do clérigo era o suficiente para ocultar a realidade de que ele era um homem como qualquer outro. Não, ele era o senhor Ashby, uma espécie de obrigação automática, para pregar e orar. Esta teimosia, tendência de pensar sempre Somos tão boas como tu, lady Chatterley, nos primeiros tempos confundia e desorientava Connie profundamente. A amabilidade curiosa, desconfiada, falsa, com que as mulheres dos mineiros lhe correspondiam; e o tom estranhamente ofensivo de valha-me Deus! Agora sou alguém, porque a lady Chatterley falou comigo! Mas ela que não pense que vale mais do que eu que ela sempre ouvia vibrar nas vozes, quase aduladoras, das mulheres, eram impossíveis de suportar. Era impossível de transpor esta barreira. Era irremediável e ofensivamente não conformista. Clifford deixava-as em paz, e ela aprendeu a fazer o mesmo. Passava sem as ver, e elas fixavam-na como se fosse uma figura de cera a andar. Quando Clifford tinha de lidar com elas, era altivo e desdenhoso, impedindo imediatamente toda a cordialidade. Na realidade era sempre assim com pessoas de outra classe. Mantinha-se firme sem fazer qualquer tentativa de conciliação. O povo não gostava nem desgostava dele, apenas fazia parte das coisas como a própria mina e Wtagby». In D. H. Lawrence, O Amante de lady Chatterley, 1928, Relógio D’Água Editores, Ficções, 2011, ISBN 978-972-708-848-1.
                  
Cortesia de RD’ÁguaE/JDACT