Início
de uma vida épica
Sertã.
Maio de 1465
«A
espada rasgou o ar, ameaçadora, faiscando sob o efeito dos primeiros raios de sol
da manhã, enquanto o céu, raiado de inquietação púrpura, pedia clemência para o
rapaz indefeso. Este ainda esboçou uma apavorada defesa, empunhando a sua
espada de madeira já quebrada, ao mesmo tempo que os espectros negros e
retorcidos das árvores circundantes pareciam horrorizados ao presenciar tamanha
crueldade. Lopo fechou os olhos tremendo, agarrado à crença de que o pai não o mataria.
O forte Cavaleiro fez retornar a monstruosa espada à sua cinta e levantou o filho
com um sorriso disfarçado nos lábios. Pedro Barriga esperava que a lição lhe servisse
de exemplo, para que não julgasse, na sua fantasiosa cabeça, que a guerra era uma
brincadeira; nela os homens eram feridos, mutilados ou mortos. Lopo Barriga, ainda
ofegante, sabia que o pai era um Cavaleiro respeitado e um bravo guerreiro ao serviço
de sua majestade, o rei de Portugal. Por essa razão, este não presenciara o seu
nascimento, porque estava em missão na conquista de Alcácer-Ceguer. A ausência paterna
foi uma constante na sua vida, somada à apatia congénita da mãe. Crescera nas serranias
da Sertã, calcorreara as suas ruas e vielas, pelejando com os amigos à sombra das
muralhas do castelo; era ali o seu lugar. Desde que se lembrava, sempre viu o senhor
seu pai, Pedro Barriga, como um austero Cavaleiro d'el-rei Afonso V a quem se dirigia
só em caso de extrema necessidade e sempre de cabeça baixa. A admiração que sentia
pelo progenitor era equivalente ao medo que este lhe fazia experimentar no pouco
tempo que permanecia em casa. A mãe, Constança Brito, mulher religiosa,
prestimosa e paciente, deixava-o ao cuidado da criada, junto de quem nutria sentimentos
de segurança. As suas irmãs, Constança e Brites, não eram sujeitas à mesma
pressão paterna, pois delas só se esperava que se tornassem excelentes damas e futuras
esposas.
Os filhos e a esposa aguardaram as
ordens do chefe da família para se sentarem à mesa, esperando ao lado das cadeiras
de madeira pesada que ele se sentasse, imitando-o de seguida. O Cavaleiro pôs as
mãos em sinal de veneração a Deus e rezou em voz alta, sendo acompanhado pela restante
família. Lopo Barriga observava o pai de soslaio, sentado à sua direita. Era um
homem alto e seco, cabelo castanho alourado pelo sol ardente do Norte de África,
profundamente crente e de voz poderosa. Segundo sempre ouvira contar, no campo
de batalha, Pedro Barriga empunhava uma espada mortífera e com ela realizara feitos
de destaque que levaram o rei a armá-lo Cavaleiro. O temor que lhe impunha a ríspida
atitude do pai derivava da obstinada educação que este lhe facultava,
exigindo-lhe uma completa ausência de reacções emocionais, passíveis de serem
percebidas como indignas de um homem temente a Deus que preze o seu bom nome.
Em toda a acção paterna, no que a ele dizia respeito, estava sempre presente o objectivo
final, transformá-lo num homem de armas, um autêntico Cavaleiro.
Após o Ámen , pronunciado, com
fervor religioso, a ordem para iniciar a refeição foi proferida. Lopo lançou-se
sobre o prato, mas logo o seu ímpeto foi travado pelo olhar reprovador do cavaleiro.
Sempre que o pai estava presente, a exigência aumentava ao ponto de se tornar dolorosa,
ampliando o ressentimento, apesar da dilatada admiração. À mesa, sobretudo na presença
dos amigos e camaradas de armas, durante as refeições, as aventuras do cavaleiro,
seu pai, eram sempre repetidas e, com certeza, muito ampliadas para engrandecer
os feitos realizados. Passavam-lhe pela cabeça imagens construídas com base nas
descrições dos feitos heróicos no campo de batalha, onde ele já se mesclava com
o pai, procurando pertencer àquela gente destemida». In Luís Barriga, Em Nome D’El
Rey, Clube do Autor, Lisboa, ISBN 978-989-724-448-3.
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