segunda-feira, 29 de outubro de 2018

O Faraó Negro. Christian Jacq. «E o pequeno santuário de Tutankhamon tinha sido piedosamente conservado, tal como as estátuas dos deuses cuja presença era garante da transmissão do espírito»

jdact e cortesia de wikipedia

«(…) O faraó negro ergueu os olhos para o pico do Gebel Barkal. Como vês, Cabeça-fria, esta obra sobreviver-me-á. Só o que está gravado numa pedra viva atravessará os anos. Convencido que o rei não detectara a gravidade das suas informações, o escriba julgou seu dever insistir. Não se trata de recriminações vulgares, Majestade, mas de um verdadeiro ataque contra a vossa pessoa. Para ser franco, julgo mesmo que uma das vossas esposas secundárias está metida nisto. Temos de nos preocupar com tanta mediocridade? O caso é sério, Majestade. Cabeça-fria merecia o seu nome. A sua perseverança provava que não tinha investigado superficialmente. Perder o meu trono... Será assim tão catastrófico? Para o vosso povo e para o vosso país, sim! O que se prepara para vos suceder não tem as mesmas preocupações que o vosso pai e vós mesmo. Só sonha apoderar-se do ouro da Núbia e gozar a sua fortuna.
O argumento tocou Piankhi. Importava-lhe pouco retirar-se, mas ver destruir a obra de várias gerações era-lhe insuportável. Vou ao templo. O meu pai Amon guiar-me-á. Cabeça-fria teria preferido que o monarca reunisse a corte o mais rapidamente possível e cortasse a direito com a sua autoridade habitual. Mas sabia que o soberano não voltaria atrás na sua decisão. Construído no sopé da Montanha Pura e sob a sua protecção, o templo de Amon era o orgulho do faraó negro. Longe de Tebas, tinha reconstituído o domínio do senhor dos deuses: uma álea de carneiros, incarnação de Amon, um primeiro pilone cujos dois maciços simbolizavam o Ocidente e o Oriente, um primeiro pátio de colunas onde eram recebidos os dignitários na altura das festas, um segundo pilone, uma segunda sala de colunas, depois o templo coberto, rodeado de capelas e terminando no santuário onde apenas o faraó podia penetrar para abrir de madrugada as portas do nãos que continha a estátua divina, expressão concreta do seu poder imaterial. Piankhi saudava-a, perfumava-a, renovava os tecidos que a cobriam, oferecia-lhe a essência dos alimentos e tornava a colocá-la no interior da pedra primordial, no coração do mistério da origem.
Durante a tarde, o templo estava mergulhado em silêncio. Os ritualistas limpavam os objectos de culto nos gabinetes que lhes eram reservados e as figuras divinas gravadas nas paredes dialogavam entre si. Um sacerdote de Karnak ter-se-ia julgado em casa se tivesse penetrado no domínio sagrado pacientemente construído por Piankhi e que este embelezava constantemente a fim de honrar a memória dos prestigiosos faraós que tinham trabalhado aqui, em Napata, para fazer brilhar a mensagem de Amon. No interior do templo estavam conservadas as esteias de Tutmósis m, o modelo do faraó negro, e de dois outros reis do Egipto que ele venerava, Seti i e Ramsés n. Para ele, esses três monarcas incarnavam a grandeza das Duas Terras, em harmonia com a vontade divina, e tinham exercido a função suprema com um rigor e um amor incomparáveis.
E o pequeno santuário de Tutankhamon tinha sido piedosamente conservado, tal como as estátuas dos deuses cuja presença era garante da transmissão do espírito. À medida que se avançava para o interior do templo, o espaço reduzia-se e a luz diminuía, até se concentrar no nãos cuja claridade secreta só era visível para os olhos do coração. O mistério da vida nunca seria explicado, mas podia ser vivido e partilhado». In Christian Jacq, O Faraó Negro, 1997, Bertrand Editora, 1998, ISBN 978-972-251-049-3.
                     
Cortesia de BertrandE/JDACT