«(…) Era uso (tal como ainda hoje
se vê) as parentes e vizinhas do morto se reunirem em casa deste para chorar
com as mulheres que lhe fossem mais chegadas; por outro lado, em frente à casa
do morto, os vizinhos e muitos outros cidadãos reuniam-se com os seus parentes,
e o clero comparecia em conformidade com a posição social do morto; e, sobre os
ombros dos seus pares, com pompa fúnebre, círios e cantos, este era levado à
igreja escolhida por ele mesmo antes da morte. Essas coisas, depois do aumento
da ferocidade da peste, acabaram-se de todo ou na maior parte, surgindo outras no
seu lugar. Por isso, não só as pessoas morriam sem muitas mulheres ao redor,
como também havia muitos que saíam desta vida sem testemunho de ninguém; e a
pouquíssimos foram concedidos o pranto piedoso e as lágrimas amargas dos cônjuges;
em vez disso, na maioria dos casos era costume rir, gracejar e festejar entre
amigos; e as mulheres, abandonando em grande parte a piedade feminina,
aprenderam muitíssimo bem esses usos em nome de sua própria saúde. E eram raros
aqueles cujos corpos fossem acompanhados à igreja por mais de dez ou doze
vizinhos; seu ataúde não era levado sobre os ombros de honrados e prezados
cidadãos, mas alçado aos ombros de uma espécie de sepultureiros surgidos na
arraia miúda, que eram chamados coveiros e prestavam serviços mediante
pagamento; estes, com passos apressados, na maioria das vezes não o levavam à igreja
escolhida antes da morte, e sim à mais próxima, atrás de quatro ou seis
clérigos com pouco lume, e em certas ocasiões até sem nenhum; e estes, com a
ajuda dos referidos coveiros, sem se afadigarem em ofícios longos ou solenes,
metiam o corpo na primeira sepultura que encontrassem vaga. Maior era o espectáculo
da miséria da gente miúda e, talvez, em grande parte da mediana; pois essas
pessoas, retidas em casa pela esperança ou pela pobreza, permanecendo na
vizinhança, adoeciam aos milhares; e, não sendo servidas nem ajudadas por coisa
alguma, morriam todas quase sem nenhuma redenção. Várias expiravam na via
pública, de dia ou de noite; muitas outras, que expiravam em casa, os vizinhos
percebiam que estavam mortas mais pelo fedor do corpo em decomposição do que
por outros meios; e tudo se enchia destes e de outros que morriam por toda
parte. Os vizinhos, em geral, movidos tanto pelo temor de que a decomposição
dos corpos os afectasse quanto pela caridade que tinham pelos falecidos,
observavam um mesmo costume. Sozinhos ou com a ajuda de carregadores, quando podiam
contar com estes, tiravam os finados de suas respectivas casas e os punham
diante da porta, onde, sobretudo pelas manhãs, um sem-número deles podia ser
visto por quem quer que passasse; então, providenciavam ataúdes e os carregavam
(alguns corpos, por falta de ataúdes, foram carregados sobre tábuas). Um mesmo
ataúde podia carregar dois ou três mortos juntos, e isso não ocorreu só uma
vez, mas seria possível enumerar vários que continham marido e mulher, dois ou
três irmãos, pai e filho, e assim por diante. E foram inúmeras as vezes em que,
indo dois padres com uma cruz para alguém, três ou quatro ataúdes, levados por
carregadores, se puseram atrás dela: e os padres, acreditando que tinham um morto
para sepultar, na verdade tinham seis, oito e às vezes mais. E tampouco eram
estes honrados por lágrimas, círios ou séquito; ao contrário, a coisa chegara a
tal ponto, que quem morria não recebia cuidados diferentes dos que hoje seriam
dispensados às cabras; porque ficou bastante claro que, se o curso natural das
coisas, com pequenos e raros danos, não pudera mostrar aos sábios o que devia
ser suportado com paciência, a enormidade dos males conseguiu tornar mais
sagazes e resignados até mesmo os ignorantes. Não sendo bastante o solo sagrado
para sepultar a grande quantidade de corpos que chegavam carregados às igrejas a
cada dia e quase a cada hora (principalmente se se quisesse dar a cada um o seu
lugar próprio, segundo o antigo costume), abriam-se nos cemitérios das igrejas,
depois que todos os lugares ficassem ocupados, enormes valas nas quais os
corpos que chegavam eram postos às centenas: eram eles empilhados em camadas,
tal como a mercadoria na estiva dos navios, e cada camada era coberta com pouca
terra até que a vala se enchesse até a borda. E, deixando de lado todas as
particularidades das passadas misérias sofridas pela cidade, direi que aqueles
tempos tão adversos que a devastavam nem por isso pouparam os campos circundantes,
onde (sem mencionarmos os castelos, que eram cidades em miniatura), nas aldeias
esparsas e nas plantações, os lavradores miseráveis e pobres e suas famílias,
sem nenhum socorro de médicos nem ajuda de serviçais, morriam nas ruas, nas
lavouras e nas casas, de dia e de noite, indiferentemente, não como homens, mas
quase como animais. Em vista disso, tornando-se dissolutos como os citadinos nos
seus costumes, eles não cuidavam das suas coisas nem dos seus afazeres; ao
contrário, como se esperassem a chegada da morte para aquele mesmo dia, não se
preocupavam com os futuros frutos da criação, das terras e do trabalho já
realizado, e esforçavam-se com todo o empenho em consumir tudo o que tivessem no
presente. Com isso, bois, asnos, ovelhas, cabras, porcos, frangos e até os
fidelíssimos cães, expulsos de suas próprias casas, saíam andando a esmo pelos
campos (onde a messe ainda estava abandonada, sem ser ceifada, para não dizer
colhida). E muitos, como se fossem racionais, depois de terem se apascentado
bem durante o dia, voltavam saciados à noite para casa, sem serem tangidos por
pastores. Que mais se pode dizer (deixando os campos e voltando à cidade), senão
que foi tamanha a crueldade do céu, e talvez em parte dos homens, que se tem
por certo que do mês de Março a Julho (por força da doença pestífera e porque
muitos doentes foram mal atendidos ou abandonados nas suas necessidades, devido
ao medo que os sãos sentiam) mais de cem mil criaturas humanas perderam a vida
dentro dos muros da cidade de Florença, e que talvez, antes dessa mortandade, não
se imaginasse que lá haveria tanta gente assim? Oh, quantos grandes palácios,
quantas belas casas, quantas nobres moradas, antes cheios de criados, senhores
e senhoras, esvaziaram-se de todos, até o mais ínfimo serviçal! Oh, quantas memoráveis
linhagens, quantas grandes heranças, quantas famosas riquezas ficaram sem seus devidos
sucessores! Quantos homens valorosos, quantas belas mulheres, quantos jovens airosos,
que ninguém mais que Galeno, Hipócrates ou Esculápio teriam considerado saudabilíssimos,
pela manhã comeram com familiares, companheiros e amigos, e à noite cearam no
outro mundo com os seus antepassados!» In Giovanni Boccaccio (1313-1375),
Decameron, 1354, Relógio d’Água, ISBN 978-972-708-879-9, L&Pm, 2013, ISBN
978-852-542-941-4.
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