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«(…) Alguns desses nomes fortes são burocratas da literatura
e nomeia-os, quando a ortodoxia enrijece, em 1962. Afasta-se de vez, no seu neo-realismo
teórico que não resistiu ao relatório Krutschov (1956) e ao silêncio cúmplice
do Partido, em 1963. Aproveita para se retratar, moral e intelectualmente:
Na minha ordem de valores actual, ponho acima de tudo a pureza
e a espontaneidade e considero como o mal maior o jesuitismo e o carreirismo. A
pior corrupção é a corrupção do carácter individual. [...] Na mentira e na
cumplicidade com a mentira nada se pode construir. Minha querida Amiga, a realidade
é coisa imensamente complicada e inesperada. A obrigação dos intelectuais
criadores é pensá-la toda, e o pensamento só é válido quando é de raiz e quando
tem a coragem de pôr tudo em causa. Uma coisa é o pensamento, outra coisa é a
ideologia. Os pensadores autênticos ficaram sós e sós ficarão. Mas a afirmação
deles nem por isso é menos válida. Se não têm repercussão no imediato, têm-na
nos períodos largos da história.
No esforço de separação das águas, a ironia é traço
recorrente, igualmente aplicada aos feitos lusíadas e internacionais, que a comunicação
de massas veicula (Le Monde, sobretudo). Espectador atento aos quatro cantos do
mundo, resume o novidoso mês de Abril de 1961 em seus altos de Guerra Fria e na
conquista do espaço, repercute o golpe do exército francês na Argélia, diverte-se
com a tentativa de derrubar Salazar, cuja coerência não evitará a perda das
colónias. Ao regular desânimo e solidão do quarto vazio soma-se a dispersão de
quem anda sempre a correr:
Mas tenho um problema grave de dispersão. Acabo por não fazer
nada com profundidade. Realismo, Marxismo, Jesuítas, Inquisição (maldita), Escravatura, Alienação, como é que
tudo isto pode caber num saco? Sou, ao mesmo tempo, um jornalista, um ensaísta e
um amador de investigação, e, ainda por cima, gosto de viver à flor da pele,
tomar banhos de sol e nadar (ou fingir). E, para complicar mais as coisas,
gosto de dormir 8 ou 9 horas por dia. (22-VI-1964)
O atraso nas respostas fica também a dever-se à invencível falta
de tempo, que o deixa infeliz. Sobrepaira a vontade de uma grande carta, dando-lhe
novidades importantes; infelizmente, é sujeito com vários fios de vida entre as
mãos, mas cada um deles é independente dos outros e não resolve os problemas
dos outros. Vivo em fatias sobrepostas e impermeáveis entre si.
Assim, a instabilidade de emprego no Centre National de la Recherche
Scientifique (CNRS), com renovação anual do contrato, o sonho de ir para o
Brasil e preocupações familiares ou do coração não explicam tudo. Encontros e
desencontros com oposicionistas mais ou menos grados na emigração acrescentam à
amargura e dissipação; no intervalo, certos retratos, inclusive de intelectuais
sorbonnards e manifestantes de rua, podem surpreender-nos.
Quanto ao labor científico, há um problema obsidiante: [...]
qual é o conteúdo real dessas coisas que as pessoas têm na cabeça e a que
chamam ideias? Isto exprime-se, também, como a relação entre ideologia e prática,
sujeita a regras que constituem o que designa por 2.º sistema de sinalização,
e, tomando-o como ensinamento para o seu presente, aplica ao empreendimento maior
que o leva de Paris a conferências na província: António Vieira, a escravatura
negra e o império teocrático luso-jesuítico. Seria este o verdadeiro 5.º
império, no qual testaria a seguinte hipótese:
Basta pensar que é possível inventar palavras que não correspondem
a realidades da existência, e que, por outro lado, é possível utilizar as
regras operatórias de forma a construir combinações inteiramente irreais. Ora,
como sinais que são, as palavras são condicionantes, condicionam o nosso
comportamento. A partir desta ideia, queria eu construir uma teoria do estilo
escolástico-barroco (p. ex., certos sermões do padre António Vieira, e,
sobretudo, os seus escritos messianistas). Esse estilo concretizar-se-ia pela
sua pretensão de se substituir à realidade e de pretender criar um condicionamento
que afaste da realidade as pessoas condicionadas.
In António José Saraiva e Luísa Dacosta, Correspondência, edição de
Ernesto Rodrigues, Gradiva, Lisboa, 2011, ISBN 978-989-616-455-3.
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