Sobre a nudez forte da verdade. O manto
diáfano da fantasia
«(…) Corri, delirante a enfiar a
casaca. E este foi o começo dessa anelada liberdade que eu conquistara
laboriosamente, vergando o espinhaço diante da Titi, macerando o peito diante
de Jesus! Liberdade bem-vinda, agora que Eleutério Serra partira para Paris,
fazer os seus fornecimentos, e deixara a Adélia só, solta, bela, mais jovial,
mais fogosa! Sim, decerto, eu ganhara a confiança da Titi com os meus modos pontuais,
sisudos, servis e beatos! Mas o que a levara a alargar assim, com generosidade
as minhas horas de honesto recreio, fora (como ela disse confidencialmente ao
Padre Casimiro) a certeza de que eu me portava com religião e não andava atrás
de saias. Porque para a tia Patrocínio todas as acções humanas, passadas por fora
dos portais das igrejas, consistiam em andar atrás de calças ou andar atrás de
saias; e ambos estes doces impulsos naturais lhe eram igualmente odiosos! Donzela,
e velha, e ressequida como um galho de sarmento; não tendo jamais provado na
lívida pele senão os bigodes do comendador G. Godinho, paternais e grisalhos;
resmungando incessantemente, diante de Cristo nu, essas jaculatórias das horas
de piedade, soluçantes de amor divino, a Titi entranhara-se, pouco a pouco, de
um rancor invejoso e amargo a todas as formas e a todas as graças do amor
humano.
E não lhe bastava reprovar o amor
como cousa profana; a senhora Patrocínio Neves fazia uma carantonha, e varria-o
como cousa suja. Um moço grave, amando seriamente, era para ela uma porcaria!
Quando sabia de uma senhora que tivera um filho, cuspia para o lado, rosnava, que
nojo! E quase achava a natureza obscena por ter criado dous sexos. Rica,
apreciando o conforto, nunca quisera em casa um escudeiro, para que não houvesse
na cozinha, nos corredores, saias a roçar com calças. E apesar de irem
embranquecendo os cabelos da Vicência, de ser decrépita e gaga a cozinheira, de
não ter dentes a outra criada chamada Eusébia, andava-lhes sempre remexendo
desesperadamente nos baús, e até na palha dos enxergões, a ver se descobria
fotografia de homem, carta de homem, rasto de homem, cheiro de homem. Todas as
recreações moças: um passeio gentil com senhoras, em burrinhos; um botão de
rosa orvalhado oferecido na ponta dos dedos; uma decorosa contradança em
jucundo dia de Páscoa; outras alegrias, ainda mais cândidas, pareciam à Titi
perversas, cheias de sujidade, e chamava-lhes relaxações. Diante dela já os
sisudos amigos da casa não ousavam mencionar dessas comoventes histórias, lidas
nas gazetas, e em que transparecem motivos de amor, porque isso a escandalizava
como o desbragamento de uma nudez.
Padre Pinheiro! Gritou ela um dia
furiosa, com os óculos chamejantes para o desventuroso eclesiástico, ao ouvi-lo
narrar de uma criada que em França atirara o filho à sentina. Padre Pinheiro!
Faça favor de me respeitar... Não é lá pela latrina! É pela outra porcaria! Mas
era ela própria que sem cessar aludia a desvarios e a pecados da carne, para os
vituperar, com ódio; atirava então o novelo de linha para cima da mesa,
espetando-lhe raivosamente as agulhas de meia, como se trespassasse ali,
tornando-o para sempre frio, o vasto e inquieto coração dos homens. E quase
todos os dias, com os dentes rilhados, repetia (referindo-se a mim) que se uma
pessoa do seu sangue, e que comesse o seu pão, andasse atrás de saias, ou se
desse a relaxações, havia de ir para a rua, escorraçado a vassoura, como um
cão.
Por
isso agora as minhas precauções eram tão apuradas que, para evitar me ficasse
na roupa ou na pele o delicioso cheiro da Adélia, eu trazia na algibeira
bocados soltos de incenso. Antes de galgar a triste escadaria da casa,
penetrava subtilmente na cavalariça deserta, ao fundo do pátio; queimava no
tampo de uma barrica vazia um pedaço da devota resina; e ali me demorava,
expondo ao aroma purificador as abas do jaquetão e as minhas barbas viris...
Depois subia; e tinha a satisfação de ver logo a Titi farejar, regalada: Jesus,
que rico cheirinho a igreja! Modesto, e com um suspiro, eu murmurava: sou eu,
Titi... Além disso, para melhor a persuadir da minha indiferença por saias,
coloquei um dia, no soalho do corredor, como perdida uma carta com selo, certo
que a religiosa Patrocínio, minha senhora e tia, a abriria logo, vorazmente. E
abriu, e gostou. Era escrita por mim a um condiscípulo de Arraiolos: e dizia,
em letra nobre, estas cousas edificantes: saberás que fiquei de mal com o
Simões, o de filosofia, por ele me ter convidado a ir a uma casa desonesta. Não
admito destas ofensas. Tu lembras-te bem como já em Coimbra eu detestava tais relaxações.
E parece-me ser uma grandíssima cavalgadura aquele que, por causa de uma distracção
que é fogo-viste-linguiça, se arrisca a penar, por todos os séculos e séculos,
amém, nas fogueiras de Satanás, salvo seja! Ora, numa dessas refinadíssimas
asneiras não é capaz de cair o teu do C. Raposo». In Eça de Queirós, A Relíquia,
1887, Typographia de A. J. da Silva Teixeira, Porto, 1887, Editora Livros do
Brasil, Obras de Eça de Queirós, 2011, ISBN 978-989-711-008-5.
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