terça-feira, 2 de outubro de 2018

O Tempo dos Filipes em Portugal e no Brasil (1580-1668). Joaquim Veríssimo Serrão. «O arauto dessa literatura de resistência, como lhe chamou Hernâni Cidade, foi frei Bernardo Brito que compôs a história dos primórdios e acabou precisamente na formação do Condado Portutalense»

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O Oriente Português: a perda de Ormuz e Malaca. O Brasil
O papel de dom João, duque de Bragança
«(…) Qual a maneira de encetar a revolta? Sugeriu-se o ataque ao castelo de Lisboa ou às fortalezas da barra no dia 1 de Janeiro de 1640, o que não se levou avante pelo receio das guarnições castelhanas ali de prevenção. Ao longo do ano foram-se amadurecendo outros projectos, mas sem que os conjurados tomassem a grande decisão, evitando que a mesma chegasse ao conhecimento da duquesa de Mântua. Na última semana de Novembro decidiu-se não protelar o movimento, quaisquer que fossem os riscos da sua execução. E assim, o plano foi marcado para 1 de Dezembro, num ataque de surpresa ao Paço da Ribeira, para tirar o poder à governadora de Portugal. Houve trinta e quatro conjurados que responderam à chamada, jurando fazê-lo mesmo com o sacrifício da vida. Costuma afirmar-se que o secretário Miguel Vasconcelos não soube da revolta, pelo que não tomou providências. A verdade é que lhe chegou uma carta com rumores da alteração, mas por imprevidência não a abriu, pelo que lhe teria sido fácil desfazer a conjura. Mas a força do destino acompanhou a vontade dos homens, e assim o triunfo da Restauração, em 1 de Dezembro de 1640, permitiu abrir uma nova página da história nacional.

O espírito de autonomia
Para compreender o eclodir da Restauração, importa ter em conta as grandes correntes mentais e ideológicas que ao longo de sessenta anos mantiveram em Portugal o espírito da autonomia. Sem uma forte vibração de alma, na consciência de um passado que mergulhava fundo no espírito dos Portugueses, talvez não fosse possível a aclamação de 1640. O sebastianismo foi um desses motores. Inspirado na ideia de que o Desejado não morrera nos areais de Alcácer Quibir, foi-se transformando de culto em doutrina, na esperança colectiva de que Portugal haveria de ser fiel ao seu destino. Várias figuras, de carácter aventureiro, se fizeram passar por Sebastião I entre 1584 e 1601, numa vaga de sabor messiânico e profético que ganhou auréola junto das populações. Para esse espírito contribuíram as trovas de Gonçalo Eanes Bandarra, sapateiro de Trancoso, em que se anunciava a hora da redenção na pessoa do Encoberto, ou rei salvador de Portugal. O regresso de Sebastião transformou-se assim em doutrina anunciadora da Restauração, no herói antevisto um século antes: João, duque de Bragança, cuja presença se tinha cumprido na hora certa.
Os Mosteiros de Santa Cruz de Coimbra e de Santa Maria de Alcobaça foram, no ponto de vista cultural, os dois grandes focos do sentimento autonomista. O primeiro, pela adesão profunda que consagrava à memória de dom António (18º monarca), prior do Crato, que fora escolar dos Crúzios. Foi também ali que se manteve vivo o culto de Afonso Henriques, o que fazia crer na protecção divina, por intercessão do primeiro monarca, sobre a coroa nacional. De maior projecção foi, porém, a obra dos monges de Alcobaça. O espírito da independência consolidara-se, na régia abadia, ao longo do governo espanhol. Foi ali que se ergueu a Monarchia Lusitana, projecto de uma história da Nação desde as mais remotas origens, obra forjada em grande parte com um objectivo Patriótico.
O arauto dessa literatura de resistência, como lhe chamou Hernâni Cidade, foi frei Bernardo Brito que compôs a história dos primórdios e acabou precisamente na formação do Condado Portutalense. Estilista admirável, não recuou todavia em servir-se de textos duvidosos, se não de pessoal feitura, para localizar no mais longínquo passado as raízes de Portugal. Coube ao seu sucessor, frei António Brandão, escrever as partes III e IV da grande História alcobacense, englobando os reinados do conde Henrique a Afonso III, ou seja, os primeiros cento e cinquenta anos do Estado Português. Foi ele, sem dúvida, o maior dos historiógrafos de Alcobaça, pelo elevado espírito de ciência histórica que a sua obra revela. Outros nomes viriam, depois da Restauração, a prosseguir a magna empresa que correspondia a um imperativo nacional. Mas a frei Bernardo Brito e a frei António Brandão se deve a permanência de uma tradição cultural que o domínio dos Filipes não foi bastante para apagar.
Desde 1580 que uma parte da nobreza, para marcar o seu protesto contra a realeza estranha, deixara o paço e fora morar nas suas terras, onde se dera a uma forma de recolhimento para, nas lembranças do passado, manter o espírito da autonomia. Em muitas povoações surgiram assim pequenas Cortes na Aldeia que, no caso expresso de Leiria, o poeta Francisco Rodrigues Lobo admiravelmente retrata. Com o apoio dessa nobreza solarenga criaram-se focos de pensamento que muito contribuíram para a valorização regional do País. Por parte de escritores e antiquários, como Manuel Severim Faria, Gaspar Estaço, Jerónimo Mendonça e Miguel Leitão Andrade, muitos aspectos do passado nacional foram objecto de estudo. Tão-pouco se pode omitir o labor de figuras que então prestaram às letras assinalável serviço. Tal o caso de Manuel de Sousa Coutinho, em religião frei Luís Sousa, que com a sua biografia de frei Bartolomeu Mártires e a história da província de São Domingos mostrou dons de prosador que fizeram dele um dos clássicos na nossa língua». In Joaquim Veríssimo Serrão, O Tempo dos Filipes em Portugal e no Brasil (1580-1668), Edições Colibri, Estudos Históricos, Lisboa, 1994, ISBN 972-8047-58-4.

Cortesia de Colibri/JDACT