Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…)
Deixa-te estar aqui sossegado com a tua irmã, que eu volto já... Limpando as
lágrimas com as costas da mão, dirigiu-se para uma porta, que abriu.
Encontrou-se numa sala obscura, onde um homem, sentado numa cadeira de balanço,
olhava, abstracto, para o campo, que se estendia diante da casa. Ao ruído da
porta, fechando-se, aquele teve um estremecimento e voltou a cabeça. Vendo o
padre, levantou-se e dirigiu-se-lhe, de braços abertos. Quedaram-se por largo
espaço, abraçados Desprendendo-se, o sacerdote disse, depois: coragem, António!
E precisa coragem para suportar um desgosto destes!..., quando mais esperanças
havia de salvá-lo, quando a pior crise estava passada. Nada fazia esperar isto!
Nada, absolutamente nada! Encostou-se a uma mesa e, deixando cair os braços,
desalentado, olhou para uma porta fechada e murmurou: a Maria Leonor está ali,
no quarto. Não consegui convencê-la a sair um pouco. Insisti e ela mandou-me
sair, imediatamente. Tive de vir... Está muito perturbada, e eu mesmo sinto
quase a razão a fugir-me. Veja se a acalma... Sentou-se na cadeira e suspirou.
O padre respondeu em voz baixa: sossega também, António. Não entres... Deus nos
dê forças para sofrer esta angústia!
Colocou a
mão sobre a tranqueta da porta e rodou-a, devagar. Junto da cama,
aglomeravam-se os criados, de joelhos, rezando. Aos pés do caixão, onde tinham
já colocado o corpo de Manuel Ribeiro, Maria Leonor soluçava. O espectáculo do
seu sofrimento quase produzia uma dor física. O sacerdote acercou-se, de mãos
postas. Benedita ergueu o rosto para ele e, depois, com os olhos fitos na face
do amo, continuou a oração. A claridade das velas lutava com a escuridão do
quarto fechado, provocando uma meia luz impressionante e trágica, mais trágica
que as próprias trevas absolutas. O cheiro das flores murchas misturava-se com
o odor da cera queimada e inundava o quarto de uma atmosfera densa, carregada
de perturbações. No corredor, uma criada desmaiou. Levaram-na, à pressa,
levantando um ruído de pés arrastados, que fez voltar o rosto transtornado de
Maria Leonor. Um desejo furioso de expulsar toda a gente dali se apossou dela;
apenas a voz da razão a impedia de gritar que a deixassem, até morrer também,
aos pés do cadáver do marido.
Nesse
momento, entraram Jerónimo e três outros camponeses. Todos de cabeça descoberta
e curvada caminharam para o padre, ao ouvido de quem o abegão pronunciou
algumas palavras em voz baixa. O prior acenou afirmativamente e, dirigindo-se a
Maria Leonor, levantou-a. Jerónimo fechou o caixão. Maria Leonor, aparvalhada,
olhava para ele. Súbito, arrancou-se dos braços do padre, correu para Jerónimo
e tirou-lhe a Chave. Tentou abrir de novo a tampa do ataúde. Os seus dedos
trémulos procuravam atabalhoadamente erguer o pesado madeiro. A desesperarão, a
impotência, o desalento, perpassaram-lhe no rosto. Cambaleou, abrindo e
fechando as mãos no ar, e tombou no sobrado, desmaiada. Jerónimo e os
companheiros levantaram o caixão sobre os ombros e encaminharam-se para a
porta. Benedita soergueu Maria Leonor, que, voltando a si, se levantava,
forcejando por se manter de pé. O padre amparou-a. Benedita passou-lhe também
um braço em volta da cintura e os três seguiram, lentamente, os homens que
conduziam o corpo de Manuel Ribeiro. António, que abrira a porta da sala onde o
padre o deixara, juntou-se-lhe, cabisbaixo. Os criados afastavam-se no corredor
largo para o deixar passar. Jerónimo e os trabalhadores vergavam sob o peso do
ataúde e inclinaram-se assustadoramente ao começar a descer a escada.
As
crianças, no patamar, olhavam admiradas para o cortejo: os fatos escuros, as
lágrimas, os suspiros abafados punham-lhes nas almas manchas de sombra e
faziam-nas tremer, angustiadas. Uma criada correu para elas, e com o avental
aberto diante dos olhos tapou-lhes a visão desoladora. Maria Leonor, amparada
pelo padre e por Benedita, nem nelas atentou. Os seus olhos iam atrás daquela
caixa comprida e estreita. Chegados ao rés-do-chão, os homens que suportavam o
ataúde hesitaram um momento. Lá fora, a chuva desabava em catadupas
torrenciais, tamborilando nas vidraças e entrando pela porta aberta, soprada
pelo vento. Os salpicos da água punham calafrios nas faces congestionadas dos
trabalhadores, encostados às ombreiras da porta. Alguém lembrou, timidamente,
que seria melhor esperar que a chuva abrandasse um pouco. Baixaram o caixão
sobre quatro cadeiras e quedaram-se todos em volta, um tanto envergonhados com
a consciência vaga e humilhante de que temiam molhar-se por causa do morto.
A
chuva redobrava de violência. O céu tingia-se duma cor escura. Riscos luminosos
começavam a sulcar as nuvens e o som ribombante da trovoada percebia-se ao
longe. A espera prolongava-se e um sentimento de mal-estar e saturação
apoderava-se de todos, quando Maria Leonor, que se mantivera calma, quebrou o
silêncio: vamos! Voltaram-se
surpreendidos para ela, e António observou: mas, Maria Leonor, esperemos mais algum tempo... A voz dela soou, novamente, agreste,
dura, destacando as sílabas: cala-te! Vamos
embora, vamos embora!...» In
José Saramago, Terra do Pecado (Viúva), Editorial Minerva, 1947, Editorial
Caminho, 1997, 2010, ISBN 978-972-211-145-4.
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