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Enigma
Alfa. 1501 - 1545
O
que murmuram os canaviais
«A
cangosta de ao fundo da quinta leva ao rio sem ponte, pensou a aia. Acaba ali junto
aos canaviais. Não chiam carros de bois carregados de gigas com cachos de uvas nem
os muares dos lenhadores tiram carroças pejadas de madeiros. Não vêm para aqui embeber-se
olhos nos olhos, arrenegando a morte, nem dar beijos furtivos os namorados de
sangue impaciente. Escolherei um sítio ermo, onde ninguém passe, decidia-se Maria
do Céu. Pôs o lenço preto pela cabeça, atou-o sob o queixo e ia a sair sem dizer
nada... Aonde vais, Céu?, perguntou-lhe Ana Macedo suspendendo o bordado no bastidor.
Havia dias já que sentia na velha aia grande inquietação: às vezes ela aproximava-se,
o olhar angustiado, a boca quase a abrir-se, e calava-se. Que tens, mulher? Para
quê esse
sacho?
Vou enterrar os gatinhos. A ninhada
foi tamanha... Afoga-os no poço. Num saco com pedras. Têm sete fôlegos, disse
desaparecendo porta fora. Tinham sete fôlegos! Tanto tinham sete fôlegos
debaixo de água como debaixo de terra. Pousou o trabalho. levantou-se do escabelo
e foi-lhe na peugada. Viu-a esgueirar-se lá adiante pelo portão da cortinha. Seguiu-a
de longe, topou-a a caminhar açodada vereda abaixo em direcção à ribeira. Aonde
vai o dianho da mulher? Boa meia légua andada, o caminho estacava junto às
águas, tão serenas que ao pé dos junços nadavam alfaiates. Soava que em noites de
ventania desferiam ali os pinhais o cântico de uma moira encantada. Nem
vivalma, mas de detrás das canas vinha som de cavadas. Contornou a moita. Hei-de
saber. A aia, cle bruços, abria um buraco e, ao ouvir passos, virou-se, largou desolada
o sacho: ai, minha ama, que não devia ter vindo! Ninhada nenhuma. Para que é
esse buraco? Não devia ter vindo, não devia ter vindo!, desabou Maria do Céu em
soluços no ombro da patroa. Moveu-se o coração de Ana, ameigou a voz: é assim tão
mau? Abre-te comigo. Há quase vinte anos que me queima a alma um segredo muito grande.
Ia abafá-lo na terra.
Se o não podes contar, também não
o deves enterrar. Com o vento dão as canas em murmurar e toda a gente o ficaria
a saber. Partilha-o comigo. Sou cova sem fundo. Não o contarei a ninguém e tu ficas
aliviada pelo menos de metade da carga, e Ana enxugava as lágrimas da pobre. Dispunha-se
esta a falar... Não!, tapou-lhe Ana a boca. Não grites, não fales alto. Nem a agulha
desses pinheiros nem as ervas do chão devem escutar. Diz-mo ao ouvido. A aia segredou
junto à orelha de Ana e os olhos de Ana iam-se abrindo, abrindo de tão medonha
coisa.
Nos dias que se seguiram desfilaram
no espírito de Ana imagens antigas. A irmã Inês a sair da casa de Santarém, corria
a era de mil e quatrocentos e noventa e dois, a casar com Rui Dias, um jovem de
Alenquer, descendente dos senhores de Góis. Senhoria secular, sim senhor, do tempo
do conde Henrique. Rui Dias era neto de Gomes Dias, criado de el-rei Fernando I
e depois de el-rei João I, o da boa memória. Esteve este seu avô nas cortes de
Coimbra e foi com o infante Henrique à conquista de Ceuta. Pagou-lhe o infante
os serviços e o valor com lhe dar as seis saboarias de Alenquer a Atouguia e o rei
João I a provedoria da gafaria de Coimbra. Casou com Brites Vaz Lemos de quem
teve Lopo Dias. Quando os infantes Henrique e Fernando partiram na trágica expedição
a Tânger. Gomes Dias não permitiu que o filho fosse consigo. Lopo Dias amuou e jurou
nunca mais usar o apelido de Góis nem o transmitir aos filhos, mas herdou as
saboarias e a provedoria do pai, que lhe foram confirmadas por el-rei Afonso, ao
serviço de cuja mãe, a rainha Leonor, viúva do rei Duarte I se conservou até à
morte dela em Toledo. Ora pois, este Rui Dias que aí vai a casar com minha irmã
é o primogénito de Lopo Dias, desfiava Ana em seu pensamento. Guapo rapaz, boa
estatura de corpo, mais delgado que grosso, a cabeça sobre o redondo, cabelos castanhos,
a testa larga desanuviada deles, olhos de um verde claro, alegres, alvo, bem-assombrado,
risonho nas covas da face e na comissura dos beiços, braços carnudos, tão compridos
que as mãos lhe passavam abaixo dos joelhos, as pernas proporcionadas ao corpo,
a voz um tanto enrouquecida». In Fernando Campos, A Sala das Perguntas,
1998, Difel, 1999, ISBN 972-290-437-X.
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