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«(…) A mãezinha expirara minutos depois
do parto, vítima de uma complicação inesperada, uma hemorragia que os médicos não
puderam conter. Desde então, nunca mais ninguém vira o conde interessar-se por
outra mulher. Monsieur Marcel instalou-se na antecâmara do quarto de dona Carlota
Justina com todos os seus frasquinhos mágicos de pós coloridos, de perfumes, os
papelinhos, os instrumentos para encanudar o cabelo, para armar um penteado de uma
altura inacreditável, cheio de laçarotes e flores. Carlota Justina veio ter com
ele e cumprimentaram-se com dois beijos no ar, como velhos amigos. O cabeleireiro
era um íntimo dela, muito afectado, muito divertido, sempre cheio de mexericos para
contar. Sabia todos os amores e todos os escândalos da Corte e não se inibia de
os contar, um mimo!
Uma hora passou, enquanto
monsieur Marcel trabalhava sem parar, tagarelava sem parar, cheio de espírito, erguendo
a sua escultura com a cabeleira de Carlota Justina como só ele sabia fazer, como
um artista criando a sua obra de arte. Por fim, subiu a um banquinho atrás da
cadeira onde ela se sentava protegendo a cara com uma máscara em forma de cone bicudo
e deixou cair sobre o seu cabelo uma nuvem de pó branco. E quando a nuvem assentou
o artista saltou do banquinho dando gritinhos de entusiasmo e ofereceu-lhe um espelho
de mão para que ela visse como estava linda. Liiiinda!!, esganiçou-se o artista.
Carlota Justina, comovida com o resultado, bateu palminhas de contentamento e soltou
um riso estridente, quase histérico. Monsieur Marcel foi-se, cantarolando palacete
fora, radiante por ter deixado a cliente satisfeita, satisfeito consigo mesmo, convicto
de que era um génio, não fosse ele o cabeleireiro mais disputado pelas mulheres
mais nobres do reino. Sim, que lá ele só servia a fidalguia! Arlete, a fiel
criada de Carlota Justina, confidente e cúmplice dos seus romances, tantas vezes
portadora secreta dos seus recadinhos de amor, quase amiga íntima, acorreu para
a ajudar a enfiar-se num impossível vestido de bambolins armado com galhos de vime
para alargar o tecido nas ancas, que mal lhe permitia passar a direito por uma porta
mas era tão chique e tão na moda que valia todos os incómodos.
Arlete segurou o espelho de mão em
frente da patroa enquanto ela colocava delicadamente no rosto uma constelação de
moscas de tafetá. Estou bem?, perguntou. Maravilhosa, disse, mostrando-se feliz
por ela. Embora soubesse manter-se no seu lugar, Arlete gostava genuinamente de
dona Carlota Justina. Não passava de uma rapariga simples de aldeia que viera
servir na residência dos senhores condes ainda novinha, com o intuito de ajudar
a cuidar da bebé recém-nascida. De modo que acompanhava Carlota Justina desde o
berço e, hoje em dia, quase não se notava a diferença de idades entre as duas. Carlota
Justina tinha-lhe grande estima e, não fora dona Consolação impor a devida
distância entre as duas, teriam crescido como irmãs. Com a morte da condessa, o
marido atravessara uma época particularmente difícil, custara-lhe muito aceitar
a tragédia, fechara-se em casa a vaguear pelos corredores louco de dor, embrutecido,
de barba desgrenhada. Desorientado, nem a filha bebé visitava no quarto onde montavam
guarda, à vez, dona Consolação e uma Arlete que na época nem os 12 anos completara,
mas que vigiava a bebé diligentemente quando a ama precisava de se ausentar,
nem que fosse para comer ou dormir.
O conde, no discernimento exíguo
que lhe restava, chamara dona Consolação para lhe passar a recomendação solene de
se encarregar da bebé. Que não lhe falte nada, tudo..., tudo o que for necessário,
disse do fundo da poltrona aquela voz taciturna e derrotada. O conde estava um
farrapo e a dona Consolação não lhe restou senão aquiescer». In Tiago
Rebelo, A Maldição do Marquês, Edições ASA, Grupo LeYa, 2019, ISBN
978-989-234-707-3.
Cortesia de ASA/JDACT