jdact
A morte de Lancelot
«(…) Sentia o livro formar-se
dentro de mim como um filho e passava os dias possuído por uma profunda e
conturbada alegria, porque as dúvidas também me assaltavam. Estava no limbo,
espécie de zona entre o sonho e a realidade, e movia-se dentro de mim como um
feto no ventre de uma mulher. Era uma experiência nova. Obcecado pelo trabalho,
falhei muitas vezes a mestre João Paz. Meu amigo alquimista copiou o que
conseguiu. Que sonho é esse, rapaz? Estás absorto, pareces um fantasma, ou um velho
meditabundo. Olhei-o. Se eu vos dissesse que tenho medo de não ter tempo,
acreditáveis?, Ele sorriu. Acreditava. Sei o que isso é. Comigo, até eu
aprender, foi a mesma coisa. Aquela necessidade de recuar dentro da nossa
própria alma. É isso. Mas como foi possível aprender? Como? Terás tempo, o teu
tempo, e aprenderás. Essa é a única coisa que te não posso ensinar. Agora vai
ter com o teu tio e pede-lhe que alguém te ajude. Deve haver por lá o resto da
obra. Isto pertence a um monte de livros que vieram da França. Assim fiz. O tio
Gil achava-se acompanhado por outro irmão, talvez um pouco mais velho, de forte
compleição, louro como eu, mas de olhos castanhos. Olha, filho, aqui tens o
irmão Jerónimo. Veio de longe. Da Palestina. Vai ficar connosco por uns tempos.
O irmão Jerónimo que parecia ocupar toda a cela, sorriu e apontou o grosso
livro que eu embrulhara em pano e apertava sob o braço: precisas certamente de
qualquer coisa, filho. Foi sempre a frase com que me recebeu, até há pouco
tempo, quando me despedi dele. Com o apoio do tio Gil, mostrei o livro. Eu ajudo-te.
Tens aqui um futuro sábio?, perguntou o meu tio. Ainda és muito novo, mas é de
novo que se começa a aprender a arte e o caminho para a sabedoria. Vem ter
comigo um dia destes, à biblioteca. Também estou a escrever. Uma encomenda.
Para a Itália, para a casa de nossos irmãos no Norte de Itália. Continuei o
trabalho durante todo esse ano até meados de Março de 1479. Resolvera festejar
o meu aniversário na cela do tio Gil onde estariam também meu pai e minha mãe,
além de mestre João Paz, homem culto e muito inteligente, de uma coruscante
sagacidade. Eu iria ler-lhe os primeiros capítulos da obra iniciada. Fui
combinar tudo para fazer surpresa a meu pai. Três dias depois, mestre João Paz
chamou-me. Íamos partir para sul, ter com a mãe da Rainha. Um dos filhos não
estava bem e o físico que por lá vivia não atinava com a febre. Fui
contrariado, mas o trabalho exigia. Quando chegámos, deparou-se-nos uma azáfama
inusitada. Uma das açafatas informou-nos de que a Infanta partia para Espanha. Que
tomássemos conta do enfermo, o jovem Manuel.
Tanto a rainha Isabel de Castela
como o príncipe João, pois o rei Afonso limitava-se a aceder, depois de
perdidas as verdadeiras ilusões, desejavam concertar a paz. Dona. Beatriz, que
era tia da rainha por parte de sua mãe, depois do infante João ter estado em
secreto colóquio com a sogra na sua quinta de Belas, onde a viúva do infante Fernando
passava longas temporadas, resolvera ajudar e, como se se tratasse de uma
visita de cortesia (como instava, do outro lado, aliás, dona Isabel) encontrar-se
com a esperta mulher de Fernando de Aragão. Seria em Alcântara, na zona
fronteiriça. Para o efeito, dona Beatriz foi até ao seu paço de Beja preparar-se
e organizar a cansativa viagem. Existia uma peça essencial neste jogo
complicado de forças: a infeliz Beltraneja, a dona Joana que o
próprio pai desacreditara, e que ingenuamente ainda assinava yo la Reyna,
e se intitulava rainha de Castela, de Leão, de Portugal como herdeira de
Henrique IV e esposa de Afonso de Portugal... La Chica, como se lhe
referia Isabel de Castela, com o sorriso depreciativo dos que podem decidir,
porque têm meios e força, o destino dos outros sem preconceitos nem hesitações.
E Isabel estava decidida a crucificá-la. Em Beja, para onde seguimos no dorso
de mulas, depois de várias paragens por hospedarias miseráveis onde dormíamos
sobre enxergas coalhadas de percevejos, a ponto de colocar água à volta dos
paus da cama que serviam de pés, pois as baratas e os percevejos percorriam o sobrado
aos milhares, e sempre com um de nós de guarda por causa
das
rapinas, fomos ver o jovem Manuel. O outro físico e mestre João lá se
entenderam porque nisto de profissão não se deve arranjar problemas, mas
colaborar...» In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II,
Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.
Cortesia
de EPresença/JDACT