domingo, 22 de março de 2020

A Casa do Pó. Fernando Campos. «Reconheço-o imediatamente e a cabeça começa-me a andar à roda: olha!, digo a Diogo. É mestre Nicolau! Eu sei. Nicolau de Chanterenne, o escultor. Foi denunciado por um pedreiro…»

jdact

A Letra Pitagórica
«(…) Qui tyrannidem affectant, alienis dissidiis suas augent vires é uma sentença do inefável Erasmo de Roterdão: os que procuram tiranizar acrescentam suas forças com as dissensões alheias. Gostas? Ih! Deus do Céu! Erasmo! Onde o fora eu desencantar? Que era uma edição que corria clandestina, sem as licenças do Santo Oficio (maldito), tendo apenas no cólofon a indicação do livreiro Germão Galhardo... Qualquer dia ia parar à fogueira só por me ouvir! Desatei a rir. Ele recordou: hoje precisamente vai-se proceder a um auto-de-fé na cidade. Dizem que haverá pela primeira vez um relaxado em carne. Sinto crescer dentro de mim, disse eu, uma grande revolta contra essas perseguições. Cristo não poderia sancioná-las. Alegavam ser para purificação da religião, contra as heresias que proliferam e para salvação das almas. Ora! Cada qual em sua consciência, já que Deus nos dera livre arbítrio, tinha direito a ter a sua crença. Prender um homem honesto, tirar-lhe toda a protecção e defesa, obrigá-lo, se preciso fosse pela tortura, a confessar crimes que não praticara, a professar a fé em que não fora criado, só porque afiara a faca na unha do polegar, ou trabalhara ao domingo, ou comera carne à sexta-feira... Visse eu como falava! Era o que lhe dizia! O abrir-lhes os olhos e levá-los a abraçar a verdade de Cristo era pelo exemplo e pela palavra persuasiva que se fazia. Não pelo pelourinho, a mutilação, o garrote, o esquartejamento, a fogueira. Eram criminosos, esses sim, perante Deus os que tal prática usavam.
Se me ouvissem, os senhores da Inquisição (maldita) diriam que falava como Lutero ou
como esse Erasmo de que havia pouco citara uma frase. Quando estivesse na cidade tinha de ter tento na língua, que as pedras agora possuíam olhos e ouvidos. Porque não me denuncias tu a uma Inquisição (maldita) que incita o filho a delatar ao pai, a esposa ao marido, o amigo ao amigo...? João! Desculpasse. Não resistia a brincar, até com coisas sérias. Eu sabia que ele era o único a quem podia dizer tais barbaridades. Teria cuidado comigo, não se preocupasse, já estava habituado havia muito tempo! O caso é que me preocupo. Há nas tuas opiniões e no teu comportamento matéria cabonde para repasto daqueles senhores sequiosos: convives com judeus, és seu amigo, tolerá-los, ouves a sina às ciganas, citas Erasmo e sustentas asserções que me põem os cabelos em pé, tens comércio com mulheres... Se eles soubessem!
Não julgues que és o único a sabê-lo. Não tenho a mínima dúvida, por exemplo, de que, sem que tu lhe tenhas dito fosse o que fosse, o superior sabe tudo o que se passou em Tavira e, agora, na casinha do vale aquando da minha doença, julgas-te espiado? Sou espiado!, e desato a rir: o que eles não podem saber, senão tu, são os nossos hinos de louvor a Deus, à beira do riacho, nus, enquanto a roupa secava. A menos que até as aves do céu sejam minhas espias, ou que uma asa de vento lhes vá soprar ao ouvido, ou uma gota de água do rio, evolando-se no ar, vá cair, transformada em chuva de segredos, na careca de quem se está interessando por mim... Quando entrámos em Évora, pela porta do sul, a cidade encontrava-se sob a emoção da expectativa de assistir ao auto-de-fé. Dobram os sinos sinistramente a anunciar o castigo dos penitentes. Corre gente, aos magotes, para ir a tempo ocupar posições que lhe permitam melhor visão do espectáculo. Da igreja da Misericórdia vem já saindo a procissão. Um homem, vestido de um balandrau preto, caminha à frente com a bandeira, ladeado por outros dois, vestidos da mesma maneira, que seguram tocheiros acesos. Têm os três os rostos medonhamente cobertos. Diante da bandeira segue um dos irmãos da Casa com a vara. De um lado e outro, do fundo escuro da porta, vêm surgindo as duas compridas alas dos capelães, de mãos postas, regidas por um outro membro da Irmandade. Aparece em seguida, no couce deste conjunto, o Crucifixo, trazido pelo irmão romeiro e acompanhado por quatro homens igualmente de balandrau preto e capuzes a tapar-lhes os rostos. Detrás do Crucifixo avançam solenemente quatro irmãos da Mesa, com varas, e os mordomos dos presos com as consolações apropriadas a esforçarem e animarem os padecentes. Um acólito transporta a caldeira e um hissopo. Algumas pessoas, como nós, param a presenciar o cortejo, mas a maior parte açuda os passos para chegar depressa à praça principal, onde se realizará o acto. A procissão agora alonga-se, porque na sua cauda vêm seguindo, nos seus hábitos, irmãos franciscanos, trinitários, dominicanos. Num silêncio que mais realça o dobre lamentoso dos sinos, a longa fila mete por uma estreita rua e dirige-se à cadeia, a fim de aí buscar os que vão ser justiçados. Metemos no seu encalço e postamo-nos em lugar de que podemos presenciar de perto o que se vai passar. A porta da cadeia abre-se e os penitentes, conduzidos pelo alcaide e demais carcereiros, aparecem: à frente, com um círio amarelo na mão, surge um homem envelhecido, vestido com uma túnica de linho branco. Reconheço-o imediatamente e a cabeça começa-me a andar à roda: olha!, digo a Diogo. É mestre Nicolau!
Eu sei. Nicolau de Chanterenne, o escultor. Foi denunciado por um pedreiro que com ele trabalhava, João Rombo. De que o acusaram?, já veremos, mas a sentença não deve ter sido pesada, que vem à frente». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT