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A
Letra Pitagórica
«(…) Qui tyrannidem affectant, alienis dissidiis suas augent vires
é uma sentença do inefável
Erasmo de Roterdão: os que procuram tiranizar acrescentam suas forças com as
dissensões alheias. Gostas? Ih! Deus do Céu! Erasmo! Onde o fora eu
desencantar? Que era uma edição que corria clandestina, sem as licenças do
Santo Oficio (maldito), tendo apenas
no cólofon a indicação do livreiro Germão Galhardo... Qualquer dia ia parar à
fogueira só por me ouvir! Desatei a rir. Ele recordou: hoje precisamente vai-se
proceder a um auto-de-fé na cidade. Dizem que haverá pela primeira vez um
relaxado em carne. Sinto crescer dentro de mim, disse eu, uma grande revolta
contra essas perseguições. Cristo não poderia sancioná-las. Alegavam ser para
purificação da religião, contra as heresias que proliferam e para salvação das
almas. Ora! Cada qual em sua consciência, já que Deus nos dera livre arbítrio,
tinha direito a ter a sua crença. Prender um homem honesto, tirar-lhe toda a
protecção e defesa, obrigá-lo, se preciso fosse pela tortura, a confessar
crimes que não praticara, a professar a fé em que não fora criado, só porque
afiara a faca na unha do polegar, ou trabalhara ao domingo, ou comera carne à
sexta-feira... Visse eu como falava! Era o que lhe dizia! O abrir-lhes os olhos
e levá-los a abraçar a verdade de Cristo era pelo exemplo e pela palavra
persuasiva que se fazia. Não pelo pelourinho, a mutilação, o garrote, o esquartejamento,
a fogueira. Eram criminosos, esses sim, perante Deus os que tal prática usavam.
Se me ouvissem, os senhores da
Inquisição (maldita) diriam que
falava como Lutero ou
como esse Erasmo de que havia
pouco citara uma frase. Quando estivesse na cidade tinha de ter tento na
língua, que as pedras agora possuíam olhos e ouvidos. Porque não me denuncias
tu a uma Inquisição (maldita) que incita o
filho a delatar ao pai, a esposa ao marido, o amigo ao amigo...? João! Desculpasse.
Não resistia a brincar, até com coisas sérias. Eu sabia que ele era o único a
quem podia dizer tais barbaridades. Teria cuidado comigo, não se preocupasse,
já estava habituado havia muito tempo! O caso é que me preocupo. Há nas tuas
opiniões e no teu comportamento matéria cabonde para repasto daqueles senhores
sequiosos: convives com judeus, és seu amigo, tolerá-los, ouves a sina às
ciganas, citas Erasmo e sustentas asserções que me põem os cabelos em pé, tens
comércio com mulheres... Se eles soubessem!
Não julgues que és o único a
sabê-lo. Não tenho a mínima dúvida, por exemplo, de que, sem que tu lhe tenhas
dito fosse o que fosse, o superior sabe tudo o que se passou em Tavira e,
agora, na casinha do vale aquando da minha doença, julgas-te espiado? Sou
espiado!, e desato a rir: o que eles não podem saber, senão tu, são os nossos
hinos de louvor a Deus, à beira do riacho, nus, enquanto a roupa secava. A
menos que até as aves do céu sejam minhas espias, ou que uma asa de vento lhes
vá soprar ao ouvido, ou uma gota de água do rio, evolando-se no ar, vá cair, transformada
em chuva de segredos, na careca de quem se está interessando por mim... Quando
entrámos em Évora, pela porta do sul, a cidade encontrava-se sob a emoção da
expectativa de assistir ao auto-de-fé. Dobram os sinos sinistramente a anunciar
o castigo dos penitentes. Corre gente, aos magotes, para ir a tempo ocupar
posições que lhe permitam melhor visão do espectáculo. Da igreja da
Misericórdia vem já saindo a procissão. Um homem, vestido de um balandrau
preto, caminha à frente com a bandeira, ladeado por outros dois, vestidos da
mesma maneira, que seguram tocheiros acesos. Têm os três os rostos medonhamente
cobertos. Diante da bandeira segue um dos irmãos da Casa com a vara. De um lado
e outro, do fundo escuro da porta, vêm surgindo as duas compridas alas dos
capelães, de mãos postas, regidas por um outro membro da Irmandade. Aparece em
seguida, no couce deste conjunto, o Crucifixo, trazido pelo irmão romeiro e
acompanhado por quatro homens igualmente de balandrau preto e capuzes a
tapar-lhes os rostos. Detrás do Crucifixo avançam solenemente quatro irmãos da
Mesa, com varas, e os mordomos dos presos com as consolações apropriadas a
esforçarem e animarem os padecentes. Um acólito transporta a caldeira e um
hissopo. Algumas pessoas, como nós, param a presenciar o cortejo, mas a maior
parte açuda os passos para chegar depressa à praça principal, onde se realizará
o acto. A procissão agora alonga-se, porque na sua cauda vêm seguindo, nos seus
hábitos, irmãos franciscanos, trinitários, dominicanos. Num silêncio que mais
realça o dobre lamentoso dos sinos, a longa fila mete por uma estreita rua e
dirige-se à cadeia, a fim de aí buscar os que vão ser justiçados. Metemos no
seu encalço e postamo-nos em lugar de que podemos presenciar de perto o que se
vai passar. A porta da cadeia abre-se e os penitentes, conduzidos pelo alcaide
e demais carcereiros, aparecem: à frente, com um círio amarelo na mão, surge um
homem envelhecido, vestido com uma túnica de linho branco. Reconheço-o
imediatamente e a cabeça começa-me a andar à roda: olha!, digo a Diogo. É
mestre Nicolau!
Eu
sei. Nicolau de Chanterenne, o escultor. Foi denunciado por um pedreiro que com
ele trabalhava, João Rombo. De que o acusaram?, já veremos, mas a sentença não
deve ter sido pesada, que vem à frente». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel,
1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.
Cortesia
de Difel/Alfaguara/JDACT