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A
Letra Pitagórica
«(…) Seguem-se duas mulheres,
também vestidas de branco e com círios cujas chamas lhes tingem as faces
exangues com laivos de cera cadavérica. Choram discretamente e não é possível
abafarem-se-lhes os ais e os gritos de aflição. Recebe-os do alcaide o
meirinho, com suas justiças, que ali mesmo os fazem ajoelhar diante do
Crucifixo dado a beijar. Colocam-nos, depois, no lugar que lhes cabe na
procissão: à frente do Crucifixo. Atrás deste postam-se uns outros oficiais segurando
um caixão com os ossos de um padecente que não havia resistido ao cárcere. Dois
meirinhos trazem as efígies em corpo inteiro de dois cristãos-novos, um que
tinha conseguido fugir para o estrangeiro e outro que havia morrido. Vem depois
um homem ainda novo mas tão desfalecido, tão desfeito pelas torturas, cujos
sinais são bem visíveis nos dedos das mãos, ensanguentados e torcidos, que dois
meirinhos têm de o amparar, um de cada lado, obrigando-o a caminhar penosamente.
Os sinos parecem passar a segundo plano, agora que os capelães de uma das alas
começam a entoar a ladainha Kyrie, eléison, respondendo os da outra Christe, eléison, sinos e
ladainha que me azoam e zunem nos ouvidos, me entontecem o cérebro, me ouram a
pontos de um instante me ter de apoiar a Diogo, que não dá conta da minha
tontura. A procissão recomeça a andar, na mesma ordem porque ali chegou, com a
única diferença de que os quatro irmãos que vêm atrás do Crucifixo passam para
a frente, cedendo o seu lugar aos últimos padecentes, que são os relaxados em
carne. Mas a partir daí tudo chega até mim como um pesadelo longínquo, em que
as formas, as cores, os sons se distorcem constantemente, se misturam no tempo
e no espaço, se desmembram e aparecem-me isolados, ou se combinam em ligações
aberrantes... Christe, audinos, cantam as vozes dos padres e logo o ricto de um
esgar de dor se destaca daquele amálgama de gente, de círios e tocheiras, e
vem, concreto como pedra arremessada, ao encontro da minha retina,
imediatamente seguido por retalhos de cores e formas de túnicas, hábitos,
castanhos, brancos, escapulários pretos, sobrepelizes de renda, estolas de
ouro, negras carapuças de rebuço tapando caras, sambenitos com labaredas
vermelhas... Christe exaudi nos, ais e gritos, mãos de frades que avançam de
crucifixo em punho a consolar os padecentes, caretas de ódio e apupos da
população enfurecida: Sancta Maria, ora pro eis... Ora pro eis! repito eu a Diogo, como em sonho, roga
por eles e não pro nobis,
por nós e pela nossa loucura. Vamos daqui, irmão, que me estomagam estas cenas.
Esperasse um pouco. Olhasse! Era imprudente retirar-me agora.
O
pesadelo continua. Põem-se todos de joelhos ao passarem à porta de uma igreja e
o grito imenso, angustioso, reboa no silêncio e nos meus ouvidos: Senhor Deus,
misericórdia! Os pés do Crucifixo e os lábios lívidos de um desgraçado a beijá-los
espumando; o largo grande da cidade cheio de gente; a tribuna de honra com o
inquisidor-geral a presidir, ladeado das caras severas, insensíveis, dos inquisidores;
a voz de um pregoeiro: justiça que manda fazer el-rei nosso senhor, manda
queimar em estátua ao cristão-novo Jacob, físico de Tavira, impenitente e
relapso...; Diogo que me segura para eu não cair desfalecido, olhando no meio
da praça as chamas a envolverem as duas efígies dos judeus; a cabeça descaída
sobre o peito do padecente atado a um poste no centro da pira; labaredas, fumo,
cheiro a carne assada e ossos calcinados; os sinos a ulularem plangentes;
frases soltas de um frade a vociferar imprecações de Inferno do alto de um
púlpito improvisado; olhos esbugalhados de terror a contemplarem aquele homem
transformado em tição ardente; algozes de bioco negro revirando raiadas órbitas
de ódio de olhos que espreitam as vítimas; a voz do promotor frei Cosme lendo
retalhos de sentenças: ... acusado de ledor da Bíblia e de possuir em sua casa
uma mandrágora..., condenado a abjurar com penitência..., acusadas de feitiçaria...,
condenadas a prisão indefinida..., culpados de judaísmo..., relapso..., relaxado
em carne...» In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva,
Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.
Cortesia
de Difel/Alfaguara/JDACT