quarta-feira, 4 de março de 2020

A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «Nunca olhara nenhuma mulher. Os padres habituaram-no a desviar os olhos. E tinha poluções nocturnas... Como estava sentindo agrado em ver aquela moça a dançar!...»

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Estrella
«(…) No adro, sentou-se no muro baixo a descansar, a ganhar forças para a caminhada, a perna ferida estendida ao pé da muleta. Telo teve uma ideia. Haviam passado por mendigos que, mostrando suas chagas, lançavam a boca de gorros no chão a solicitar esmola. O pajem tirou o barrete e deixou-o cair aberto aos pés de Savachão. Que fazes?, eriçaram-se os sobejos da prosápia real, erguendo-se de súbito. Com simplicidade Telo fê-lo sentar-se de novo e disse, encolhendo os ombros num meio sorriso: precisamos de dinheiro. Não queres roubar, pois não? Deixa isso por minha conta. Por ti não se me arriçam os pergaminhos. Savachão fechou as lágrimas nos olhos e engoliu o soluço na garganta e quedou-se ali como uma estátua. As pessoas passavam, entrando e saindo, magras moedas caíam na carapuça, côdeas de broa, fruta passa. Veio distrair daquela sonolência o som de uma viola e do canto gorjeado de um cigano. Olhou. Do lado de fora do adro uma companhia de gitanos, numa clareira entre árvores, dava seu espectáculo. Veio um de tronco nu, musculado, pegou de uma mecha embebida em resina, acendeu-a na fogueira, engoliu um líquido que guardou na boca e chegou-lhe fogo lançando as chamas, que lhe saíam das fauces como dragão. Depois, enfiou a mecha acesa pela garganta e tornou-a a retirar sem que se apagasse e roçou o fogo pelos peitos, pelos braços como se nada sentisse. Em redor, o público aplaudia. Uma menina vinha pela roda com um púcaro na mão a recolher a paga. Alguns viravam costas e retiravam-se quando ela se aproximava. Já entrava outro, com facas afiadas e desatava a metê-las pela goela feita bainha. Mais aplausos ante a façanha. As guitarras tocavam, dois cantores garganteavam trinados andaluzes, quando, livre a pequena arena, salta de lá uma moça, a saia rodada aos folhos, em airosos requebros de ancas, braços e mãos, rodopiando sobre um só pé como pião, estacando súbito, batendo os calcanhares, estalando castanholas, ao som de pandeiros, adufes, palmas e olés desencontrados dos companheiros.
Nunca olhara nenhuma mulher. Os padres habituaram-no a desviar os olhos. E tinha poluções nocturnas... Como estava sentindo agrado em ver aquela moça a dançar!... Nenhuma das princesas que lhe inculcavam para mulher teria certamente a graça daquela rapariga... E pôs-se a pensar que, se razões de estado ou o seu desinteresse haviam sido até ali impedimento a que se casasse, nem que quisesse poderia casar-se com uma moça como aquela em razão de clã e de raça da parte, não de si, mas da família cigana... A dançarina tinha terminado. Savachão procurou-a com os olhos, mas não a viu. Na pequena arena dois macacos faziam cabriolas. Queres que te leia a sina, chico?, como aparição estava a cigana diante dele. Tão confuso ficou que a olhava sem responder. Não, não quer, respondeu Telo a despachá-la. Tu agora lês a sina a mendigos? Vens dar-nos esmola? E quem te disse que eu dele quero dinheiro? Mendigos vós? Não enganais a ciganita. Como te chamas, moça?, perguntou Savachão. Estrella, senhor. Tratas-me por senhor... No lo es? Estás diante de um romeiro pobre. O teu pensamento me chamou. Não pensavas em mim ainda agora quando me viste dançar?
Savachão não encontrou que dizer. Olhava a moça nos olhos. Nem preciso das tuas mãos, disse ela. Esse azul dos teus olhos contam tudo. Calla!, sem bem saber porquê, Savachão levantou-se e levou o indicador aos lábios. Tomou da muleta e começou a caminhar. Aún hoy volveremos a encontrarnos. Interdito com a cena, Telo apanhou do chão o barrete com as esmolas e seguiu-o. Em breve saíram do terreiro e deixavam a romaria, estrada fora. Passavam terras maninhas, abandonadas, casais desertos. Vinha lá um casebre. Um cão magricela  pôs-se a ladrar. Num quinteiro uma mulher, a quem a miséria secara a beleza, cavava a horta. Uma criança apareceu, rota e descalça, no negrume da porta. Quando se aproximaram, a mulher estacou arrimada ao cabo da enxada. Deus te salve, dona! Salve-vos Deus. Que quereis? Um pouco de água, disse Telo. Está aí um balde. Ide por ela ao ribeiro, ali a baixo. Telo foi pela água. Savachão sentou-se num banco de pedra, sob a latada, a descansar a perna. Estás ferido, notou a mulher, chegando-se... Vens da guerra? O meu homem também lá anda. Deus o traga vivo... Vens de lá? El-rei ganhou a batalha? Não, não!, respondia Savachão aturdido. Não ganhou?, levou a mulher as mãos à cabeça, largando a enxada. Ai minha Nossa Senhora! Meu rico homem! "Não é isso, mulher, apiedou-se Savachão. Não?
Não. Não venho da batalha nem sei nada dela. Se ele por lá me morre e eu fico viúva com esta menina órfã!... Que desgraça vai ser!... Maldito rei! Levou-me o braço que nos protegia». In Fernando Campos, A Ponte dos Suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

Cortesia de Difel/JDACT