quarta-feira, 4 de março de 2020

A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «Não é verdade que temos todo o tempo do mundo e da vida? Que vai ser de ti? Não me esperam despachos, louvores ou punições alheias, serões nos paços, audiências a embaixadores…»

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Estrella
«(…) Olhou-os a todos, que se prestavam a partir, como um pai olha os filhos: pobres de vós! Sem cavalo, sem égua, sem asno que vos leve... E tu, Senhor? Savachão, emendou o rei. E tu? Ainda por cima com muleta... Deixa. Verei mais de passo a minha ruína. Separaram-se, seguindo seus destinos, após haverem combinado com Telo o modo de darem sinais de si. Os primeiros passos andados, reconhecera Savachão que havia chegado a hora das provações. Telo, sem ferimentos, nem se dera conta de que já ia lá adiante. Quando se viu sozinho e, olhando atrás, enxergou o rei a um tiro de pedra, envergonhou-se da desatenção. Correu a reunir-se-lhe: perdoai, Senhor. Emendou-se a um gesto do amo: perdoa, Savachão. Como vai ser? Tu quase não podes andar. Levará mais tempo. Não é verdade que temos todo o tempo do mundo e da vida? Que vai ser de ti? Não me esperam despachos, louvores ou punições alheias, serões nos paços, audiências a embaixadores, preocupações de governo, montarias, refregas militares...
Dizia estas coisas procurando sorrir por entre a água dos olhos. Telo olhava-o constrangido. Savachão retomou o caminhar trôpego, vagaroso. Meu cavalo baio, tão formoso! Caído ferido no último relincho..., a apodrecer lá em baixo no areal fedorento... A fortaleza de São Vicente ficara para trás. Ele voltara-se como a dizer-lhe adeus. Telo acompanhou-lhe o olhar. Contra a prata do mar Oceano negrejavam as pedras das muralhas. Ali fundei eu a minha Ordem do Cavaleiro da Cruz de Jesus Cristo... Posso chamar-te Cavaleiro da Cruz? perguntou o pajem. Já não há ocasião disso. O Cavaleiro da Cruz morreu naquela desgraçada batalha. Tenho fé que não. Algum tempo depois chegavam à vista da ermida de Nossa Senhora de Guadalupe, próximo da Raposeira. Vinham de lá os sons de romaria e arraial. Pararam a escutar...
Quinze de Agosto. Romagem à Senhora, disse Savachão. Caminharam pela várzea, pela sombra e o cheiro das figueiras, que vergavam pejadas de fruto. Telo colheu alguns e veio apresentá-los ao rei na bandeja de uma folha. Distraído, ia a fazer vénia... Estás doido! Olha além peregrinos. Podem ver-nos. Comeu um figo e perguntou: e tu? Não comes? Ele próprio meteu um na boca do companheiro. Mas... Somos iguais, não te esqueças. A ermidinha surgia com os seus fortes botaréus arrimados às paredes baixas, as carrancas toscas das gárgulas a rirem-se de cima, no adro murado o portal gótico aberto e a rosácea um pouco descentrada do pórtico, a cruz no topo da fachada. Entravam mulherzinhas do povo, os lenços na cabeça, arrastando os joelhos pela pedra, os olhos postos na imagem venerada lá adiante no altar-mor. Os romeiros espalhavam-se pelo adro, pelo largo à volta da capela, à sombra de tendas de pano que esvoaçava na aragem marítima, ou sob as ramas das figueiras, ou sentados em palha que se acamava sob as carroças, rodeados de bilhas de água e pichéis de vinho, de condessas de ovos, pão e salpicões.
Alguns haviam armado suas bancas de venda: de mistura com comidas e bebidas, rosários e agnusdei, cestinhas de ovos cozidos coloridos, de figos, alfarrobas e amêndoas. Savachão quis entrar no templo a rezar. Molhou a ponta dos dedos na pia de água benta e persignou-se e benzeu-se, encostado ao primeiro arco da nave, olhou além a imagem da Senhora sobre o altar-mor e fechou os olhos, concentrado. A seu lado, Telo olhava ao alto a abóbada artesoada, as nervuras que vinham apoiar-se nas colunas, a lavra dos capitéis, uma cabeça de boi, cabeças humanas de bela expressão, um peixe, ramos e folhas de carrasqueiro e palma, os fustes de grés amarelo ou cinzento com veios verdes e rosa-pálido, a janela alta ao fundo, por detrás do altar, fendida em duas frestas, os travejamentos do resto do tecto com a telha-vã a descoberto, da trave lançada entre as impostas do arco triunfal a lamparina pendente, acesa diante do sacrário, a gente que, sentada no chão sobre as próprias pernas, aguardava a hora da função religiosa. Vem, encaminhava-se Savachão para a porta». In Fernando Campos, A Ponte dos Suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

Cortesia de Difel/JDACT