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Estrella
«(…)
Olhou-os a todos, que se prestavam a partir, como um pai olha os filhos: pobres
de vós! Sem cavalo, sem égua, sem asno que vos leve... E tu, Senhor? Savachão, emendou
o rei. E tu? Ainda por cima com muleta... Deixa. Verei mais de passo a minha
ruína. Separaram-se, seguindo seus destinos, após haverem combinado com Telo o
modo de darem sinais de si. Os primeiros passos andados, reconhecera Savachão
que havia chegado a hora das provações. Telo, sem ferimentos, nem se dera conta
de que já ia lá adiante. Quando se viu sozinho e, olhando atrás, enxergou o rei
a um tiro de pedra, envergonhou-se da desatenção. Correu a reunir-se-lhe:
perdoai, Senhor. Emendou-se a um gesto do amo: perdoa, Savachão. Como vai ser?
Tu quase não podes andar. Levará mais tempo. Não é verdade que temos todo o
tempo do mundo e da vida? Que vai ser de ti? Não me esperam despachos, louvores
ou punições alheias, serões nos paços, audiências a embaixadores, preocupações
de governo, montarias, refregas militares...
Dizia
estas coisas procurando sorrir por entre a água dos olhos. Telo olhava-o
constrangido. Savachão retomou o caminhar trôpego, vagaroso. Meu cavalo baio,
tão formoso! Caído ferido no último relincho..., a apodrecer lá em baixo no
areal fedorento... A fortaleza de São Vicente ficara para trás. Ele voltara-se como
a dizer-lhe adeus. Telo acompanhou-lhe o olhar. Contra a prata do mar Oceano
negrejavam as pedras das muralhas. Ali fundei eu a minha Ordem do Cavaleiro da
Cruz de Jesus Cristo... Posso chamar-te Cavaleiro da Cruz? perguntou o pajem. Já
não há ocasião disso. O Cavaleiro da Cruz morreu naquela desgraçada batalha. Tenho
fé que não. Algum tempo depois chegavam à vista da ermida de Nossa Senhora de
Guadalupe, próximo da Raposeira. Vinham de lá os sons de romaria e arraial.
Pararam a escutar...
Quinze
de Agosto. Romagem à Senhora, disse Savachão. Caminharam pela várzea, pela
sombra e o cheiro das figueiras, que vergavam pejadas de fruto. Telo colheu
alguns e veio apresentá-los ao rei na bandeja de uma folha. Distraído, ia a fazer
vénia... Estás doido! Olha além peregrinos. Podem ver-nos. Comeu um figo e
perguntou: e tu? Não comes? Ele próprio meteu um na boca do companheiro. Mas...
Somos iguais, não te esqueças. A ermidinha surgia com os seus fortes botaréus
arrimados às paredes baixas, as carrancas toscas das gárgulas a rirem-se de cima,
no adro murado o portal gótico aberto e a rosácea um pouco descentrada do
pórtico, a cruz no topo da fachada. Entravam mulherzinhas do povo, os lenços na
cabeça, arrastando os joelhos pela pedra, os olhos postos na imagem venerada lá
adiante no altar-mor. Os romeiros espalhavam-se pelo adro, pelo largo à volta
da capela, à sombra de tendas de pano que esvoaçava na aragem marítima, ou sob
as ramas das figueiras, ou sentados em palha que se acamava sob as carroças,
rodeados de bilhas de água e pichéis de vinho, de condessas de ovos, pão e
salpicões.
Alguns
haviam armado suas bancas de venda: de mistura com comidas e bebidas, rosários
e agnusdei, cestinhas de ovos cozidos coloridos, de figos, alfarrobas e
amêndoas. Savachão quis entrar no templo a rezar. Molhou a ponta dos dedos na
pia de água benta e persignou-se e benzeu-se, encostado ao primeiro arco da
nave, olhou além a imagem da Senhora sobre o altar-mor e fechou os olhos,
concentrado. A seu lado, Telo olhava ao alto a abóbada artesoada, as nervuras que
vinham apoiar-se nas colunas, a lavra dos capitéis, uma cabeça de boi, cabeças
humanas de bela expressão, um peixe, ramos e folhas de carrasqueiro e palma, os
fustes de grés amarelo ou cinzento com veios verdes e rosa-pálido, a janela alta
ao fundo, por detrás do altar, fendida em duas frestas, os travejamentos do
resto do tecto com a telha-vã a descoberto, da trave lançada entre as impostas
do arco triunfal a lamparina pendente, acesa diante do sacrário, a gente que,
sentada no chão sobre as próprias pernas, aguardava a hora da função religiosa.
Vem, encaminhava-se Savachão para a porta». In Fernando Campos, A Ponte dos
Suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN
978-972-290-806-1.
Cortesia
de Difel/JDACT