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Servos
da terra. Ano de 1320. Quinta de Bernat Estanyol Navarcles. Principado da
Catalunha
«(…) Havemos de sair desta, Arnau,
repetiu, desatando a correr em direcção a casa. Percorreu o caminho sem olhar
para trás. Nem sequer quando chegou se permitiu um momento de descanso; deixou
Arnau no berço, agarrou num saco e encheu-o de trigo moído e de legumes secos,
uma bexiga cheia de água e outra cheia de leite, carne salgada, uma escudela, uma
colher e roupa, algum dinheiro que tinha escondido, uma faca de caça e a sua
balestra... Que orgulho tinha o pai nesta balestra, pensou, enquanto a
sopesava. Lutou ao lado do conde Ramon Borrell quando os Estany ol eram livres,
repetia-lhe sempre que o ensinava a usá-la. Livres! Bernat atou o menino ao
peito e carregou tudo o resto. Seria sempre um servo, a não ser que... Por
agora, seremos fugitivos, disse ao filho, antes de se lançar para o monte. Ninguém
conhece estes montes melhor que os Estany ol, assegurou-lhe, já no meio das árvores.
Sempre caçámos nestas terras, sabes? Bernat avançou por entre a folhagem até chegar
a um riacho, meteu-se nele com a água até aos joelhos e começou a subir o seu
curso. Arnau fechara os olhos e dormia, mas Bernat continuava a falar com ele. Os
cães do senhor não são muito rápidos, maltrataram-nos demasiado. Chegaremos até
lá acima, onde o bosque se adensa e se torna difícil andar a cavalo. Os
senhores só caçam a cavalo, nunca chegam a esta zona. Rasgariam as suas vestes.
E os soldados... Para que haviam de vir caçar para aqui? Com a comida que nos
roubam, têm que lhes chegue. Vamos esconder-nos, Arnau. Ninguém conseguirá
encontrar-nos, juro-te, Bernat acariciou a cabeça do filho enquanto continuava
a subir contra a corrente.
A meio da tarde, fez uma paragem.
O bosque tornara-se tão frondoso que as árvores invadiam as margens do riacho e
cobriam por completo o céu. Sentou-se sobre uma rocha e olhou para as pernas,
brancas e enrugadas pela água. Só então notou a dor, mas não se importou. Desfez-se
da carga e desatou Arnau. O menino abrira os olhos. Diluiu leite em água e
adicionou-lhe trigo moído, remexeu a mistura e aproximou a escudela dos lábios
do pequenito. Arnau rejeitou-a, com um esgar. Bernat limpou um dedo no riacho,
molhou-o na comida e tentou de novo. Depois de várias tentativas, Arnau
correspondeu e permitiu que o pai o alimentasse com o dedo; depois, fechou os
olhos e adormeceu. Bernat comeu apenas um pouco de carne salgada. Teria gostado
de descansar um pouco, mas ainda lhe faltava uma boa distância. A gruta dos
Estany ol, como lhe chamava o seu pai. Chegaram lá quando já tinha anoitecido, depois
de terem feito outra paragem para que Arnau comesse. Entrava-se na gruta por
uma estreita fenda aberta nas rochas, que Bernat, o seu pai e também o seu avô
fechavam por dentro com troncos, para dormirem ao abrigo do mau tempo e dos
animais, quando saíam para caçar.
Acendeu um fogo à entrada da
gruta e entrou nela com uma acha, para se assegurar de que não estivesse a ser
ocupada por algum animal; depois, acomodou Arnau sobre um colchão improvisado
com o saco e com ramos secos, e voltou a dar-lhe de comer. O pequenito aceitou
o alimento e caiu num sono profundo, tal como Bernat, que nem sequer foi capaz
de comer a carne salgada. Ali estariam a salvo do senhor, pensou, antes de
fechar os olhos e compassar a sua respiração com a do filho.
Llorenç de Bellera saiu a galope
desenfreado com os seus homens, assim que o mestre da forja encontrou o
aprendiz, morto no meio de um charco de sangue. O esaparecimento de Arnau e o
facto de o pai ter sido visto no castelo apontaram imediatamente para a culpa
de Bernat. O senhor de Navarcles, que esperava montado a cavalo em frente à
porta da casa dos Estany ol, sorriu quando os seus homens lhe disseram que o
interior estava remexido e que, ao que parecia, Bernat tinha fugido com o
filho. Depois da morte do teu pai, ainda te livraste, vociferou, mas agora será
tudo meu. Procurem-no!, gritou aos homens. Depois, virou-se para o aguazil: faz
uma relação de todos os bens, haveres e animais desta propriedade e trata de
que não falte nem uma libra de cereal. Depois, procura Bernat. Ao fim de vários
dias, o aguazil compareceu diante do seu senhor, na torre de menagem do castelo:
procurámos em todas as outras quintas, nos bosques e nos campos. Não há nem
rasto de Estany ol. Deve ter fugido para alguma cidade, talvez para Manresa,
ou...
Llorenç
de Bellera mandou-o calar com um gesto da mão.
Acabará por cair. Manda aviso a
todos os outros senhores e aos nossos agentes nas cidades. Diz-lhes que fugiu
um servo das minhas terras e que deve ser detido. Nesse momento, apareceram
Francesca e dona Catarina, com Jaume, o filho desta, nos braços da primeira. Llorenç
de Bellera observou-a e fez um gesto sacudido; já não precisava dela. Senhora, disse
para a mulher, não compreendo como permitis que uma meretriz amamente o meu filho.
Dona Catarina estremeceu. Acaso não sabeis que a vossa ama é a mulher de toda a
soldadesca? Dona Catarina arrancou o filho dos braços de Francesca. Quando
Francesca soube que Bernat tinha fugido com Arnau, interrogou-se sobre o que
seria feito do filho. As terras e propriedades dos Estany ol pertenciam agora
ao senhor de Bellera. Não tinha a quem pedir ajuda e, entretanto, os soldados
continuavam a aproveitar-se dela. Um pedaço de pão duro, uma verdura podre, por
vezes algum osso para roer: tal era o preço do seu corpo». In Ildefonso Falcones, A Catedral
do Mar, 2006, Bertrand Editora, 2009, ISBN 978-972-251-511-5.
Cortesia de BertrandE/JDACT