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Estrella
«(…)
Obrigado, Estrella. Quando eu puder... Não prometesse nada, que tinha à frente
muita vida madrasta a percorrer. Que desgraça tamanha! Quando quisesse
desabafar, pensasse em Estrella, mesmo que estivesse longe ela tinha a caixa
aberta e a alma muy ancha... Escurecia. A meia légua de uma povoação, escolheram
local de acampamento num sobreiral junto de um ribeiro. As carroças fizeram
muralha em redor do terreiro. Ergueram-se as tendas e não tardou que uma boa
fogueira ardesse no centro do eirado e, sobre um tripé, numa grande caldeira de
ferro começasse a borbulhar a cozedura. Estrella fez sentar-se Savachão num
fardo de palha e Consuelo começou a desatar-lhe as ligaduras da perna e da
cabeça. O rei dos ciganos dava ordens: Maurício. Vai à vila por vitualhas. O
moço logo atrelou um burrico a uma pequena carroça e deitou-se a caminho. "Que
mexerufada é essa que me estás a pôr na perna?, perguntou Savachão.
Não
te cheira bem?, disse Consuelo, de joelhos diante da perna dele, a saia preta
em roda pelo chão. Vais ficar bom e massajava de leve para não magoar. Unguento
milagroso. Mas não me perguntes como se faz. Segredo. Vem já da minha avó e da
avó da minha avó..., sei lá... Linda ferida, sim, senhora. Como é que
arranjaste isto? E esta cabeça, meu loiraço! Andaste à esgrima com os
meirinhos? Savachão olhou Estrella que, de pé, observava o tratamento. Sim.
Mais ou menos isso, respondeu. Estes moços vagam por aí de noite, pelas
tabernas e pelas put… e depois pegam-se uns com os outros... Telo, prestável,
para não levantar dúvidas quanto aos seus hábitos e os do companheiro, ajudava
Manolo a pensar os animais e a procurar lenha. Estrella agachou-se ao lado
direito de Savachão e pegou-lhe na mão, afagando-lha: mi precioso, ahora te
puedo leir la buena-dicha? Não, deixa!, sacudia ele a mão. ... saber lo que te
espera... Olhou-a desvairado: só Deus sabe.
Está
nos teus olhos, já to disse, e as linhas das tuas palmas o hão-de confirmar. A
notícia está aí a rebentar e a espalhar-se por todo o reino. De que estás tu a
falar? Estrella ergueu-se. Maurício chegava da vila. Apeou-se esbaforido,
ciganos e ciganas rodeavam-no. Consuelo levantou-se e chegou-se a eles. Sabeis
o que corre na vila? Que é? Que foi? A batalha perdida, o exército
destroçado... Quem to disse? Não se fala noutra coisa. Os velhos arrepelam-se,
as mulheres uivam. E o rei? Uns dizem que morreu, outros que desapareceu. Grande
desgraça! A morte! O luto! Viuvez! Orfandade! Eu bem vos dizia que ele era
louco, afirmava o rei dos ciganos. Telo e Manolo aproximavam-se. Que aconteceu?
Perguntou Manolo. Uma multidão de vozes deu-lhe a notícia. Telo afastou-se e chegou-se
a Savachão: ouviste?
Meneou
que sim. Depois disse em voz baixa: temos de desaparecer quanto antes. Quanta
chaga a fechar, alminha! Vai levar tempo..., disse Estrella que se aproximara. Fica,
enquanto o acampamento aqui estiver. Não há melhor sítio. Savachão olhou-a
hesitante. O rei dos ciganos achegava-se falando com os outros: Rei, sabeis o
que vos digo?..., vale mais ser rei dos ciganitos... Se toda a cavalaria, carriagem
e mais acampamento por lá ficou..., morta, ferida, pilhada, aprisionada tanta alimária,
quem vai fazer bom negócio com cavalos, muares, potros, burros, digo-vos eu
quem é..., e batia no peito, cá o rei dos ciganos.
Depois
da ceia o acampamento adormeceu. Em respeito pelo luto, essa noite não houve
descantes. De madrugada, Savachão, que estava estendido na palha, na tenda de
Manolo, tocou no braço de Telo a seu lado. Levantaram-se em silêncio. Manolo ressonava.
Savachão apoiou-se à muleta e saíram por detrás das carroças, junto aos
animais. Quando se afastavam do acampamento, Savachão parou a olhar para trás.
Estrella, de pé à boca da sua tenda, levantava o braço num adeus.
O
Sapateiro Santo
O
que me contais é coisa de espanto, disse o arcebispo de Espálato. Não achais,
cónego Battista? O romeiro conservou a testa apoiada na mão, o pensamento alheado,
enquanto o cónego respondia: como muito bem sabe Vossa Eminência, a missão
sacerdotal leva o padre a conhecer as maiores alegrias e tragédias da humanidade...,
buscava de longe, com método, a resposta à pergunta do prelado: ... nos
alçapões da alma, as histórias mais imprevistas. Mas, desde a do rei Édipo,
que, sem o saber, investiga o próprio crime, ou a do mouro Arum Al-Rachid, que sonha
ser rei, nunca como agora tomara conhecimento de caso tão extraordinário como o
que este infeliz está contando: um rei que, por vergonha, pusilanimidade ou
covardia louca... Não digais mais, atalhou angustiado o peregrino. Poupai quem
tanto tem sofrido. Desculpai, disse o cónego, compassivo. Eu não queria... Escutai
o resto, que para isso vim». In Fernando Campos, A Ponte dos Suspiros,
1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.
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de Difel/JDACT