Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…) Germán examinou-me
com curiosidade benevolente. Devolvi a sua amabilidade com uma inclinação de
cabeça e levei a colher aos lábios. Assim pelo menos não podia falar e acabar enfiando
os pés pelas mãos. Continuamos a comer em silêncio. Não demorei para perceber
que, do outro lado da mesa, Germán estava caindo no sono. Quando a colher
finalmente escorregou de seus dedos, Marina levantou-se e, sem dizer uma palavra,
afrouxou sua gravata de seda prateada. Germán suspirou. Uma das suas mãos
tremia levemente. Marina deu o braço ao pai para ajudá-lo a levantar. Germán
concordou, abatido, e sorriu fraco para mim, quase envergonhado. Parecia que
tinha envelhecido 15 anos num piscar de olhos. Me desculpe, por favor, Oscar...,
disse num fio de voz. São coisas da idade. Levantei-me também, oferecendo ajuda
a Marina com os olhos. Ela recusou e pediu que ficasse na sala. Seu pai se
apoiou nela e assim os dois abandonaram o salão. Foi um gosto, Oscar..., murmurou
a voz cansada de Germán, perdendo-se no corredor de sombras. Venha-nos visitar de
novo, venha-nos visitar... Ouvi os passos sumirem no interior da casa e esperei
por Marina à luz das velas por quase meia hora. A atmosfera da casa começou a
pesar sobre mim.
Quando tive certeza de que Marina
não voltaria, comecei a me preocupar. Pensei em ir atrás dela, mas não me
pareceu correcto ficar procurando pelos quartos sem ter sido convidado. Pensei
em deixar um bilhete, mas não tinha como fazer isso. Estava anoitecendo, de
modo que o melhor a fazer era ir embora. Voltaria no dia seguinte, depois das
aulas, para ver se estava tudo bem. Surpreso, constatei que não via Marina há
apenas meia hora e a minha mente já estava procurando pretextos para voltar.
Fui até à porta dos fundos, na cozinha, e percorri o jardim até ao portão. O céu
se apagava sobre a cidade cheio de nuvens em trânsito. Enquanto ia para o
internato, passeando lentamente, os acontecimentos daquele dia desfilaram na
minha memória. Ao subir as escadas para o quarto andar estava convencido de que
tinha sido o dia mais estranho da minha vida. Mas se fosse possível comprar uma
entrada para ver tudo se repetir, compraria sem pensar duas vezes.
À noite, sonhei que estava preso
dentro de um imenso caleidoscópio. Um ser diabólico, de quem só podia ver o
olho enorme através da lente, fazia o mecanismo girar. O mundo se desfazia em
labirintos de ilusões de óptica que flutuavam ao meu redor. Insectos.
Borboletas negras. Despertei de repente, com a sensação de ter café fervente correndo
nas veias. Aquela febre não me abandonou por todo o dia. As aulas de
segunda-feira se suicidaram como comboios sem paragem na minha estação. JF percebeu
imediatamente. Você já anda nas nuvens normalmente, sentenciou, mas hoje está
além da estratosfera. Está doente? Tratei de tranquilizá-lo com um gesto vago.
Consultei o relógio acima do quadro-negro. Três e meia. A aula acabaria dentro
de duas horas. Uma eternidade. Lá fora, a chuva arranhava os vidros. Quando a
campainha tocou, fugi a toda a velocidade, dando um bolo em JF e em nosso
passeio habitual pelo mundo real. Atravessei os eternos corredores até chegar à
saída. Os jardins e as fontes da entrada empalideciam sob o manto da
tempestade. Não tinha guarda-chuva e o meu casaco não tinha capuz. O céu era
uma lápide de chumbo. Os lampiões ardiam como fósforos. Comecei a correr.
Evitei poças, desviei de bueiros inundados e cheguei à saída. Riachos de chuva desciam
pela rua como uma veia perdendo sangue. Molhado até aos ossos, corri por ruelas
estreitas e silenciosas. Os bueiros rugiam à minha passagem. Parecia que a cidade
se ia fundir num oceano negro. Levei dez minutos para chegar à cerca do casarão
de Marina e Germán. Nessa altura, as minhas roupas e sapatos estavam irremediavelmente
encharcados». In Carlos Ruiz Zafón, Marina, 1999, Planeta Editora, 2010, ISBN 978-989-657-119.1
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