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O
Sapateiro Santo
«(…)
Porque dizes isso?, perguntou Telo. Com o fedor que vem de África, onde filhos
e maridos apodrecem, os ventos começam a ser de devassidão..., sorriam-lhe os
dentes sujos e acrescentava: se os maridos soubessem..., eh, eh, eh..., antes
queriam continuar mortos... Levantaram-se, entraram pelas portas de Santo Antão
e, pela rua que vai da estrebaria de el-rei, caminharam ao longo da muralha que
descia de Santa Ana. Ficaram lá todos, disse Savachão. Até eles. Eles quem? Os
cavalos. Repara, Telo, como está vazia a estrebaria. Temos agora ali boa palha
para dormirmos. Telo comoveu-se: meu Senhor! Savachão enlaçou-o com o braço
direito pelos ombros: amigo..., e, continuando a caminhar, acrescentou: vou estando
habituado, mas quero ainda sepultar-me de vez, quando, daqui a dias, forem as
minhas solenes exéquias nos Jerónimos. Esquecia-me de dizer-te informou Telo. É
hoje à noite que os outros virão juntar-se a nós. Onde é o encontro? Luís
sugerira as casas em que, num dos pátios do hospital, se acolhem peregrinos e
mendigos. Junto às da roda e do criadoiro?, riu-se Cristóvão. Lá enjeitados
somos nós, que nos enjeitámos a nós próprios, mas julgo que dispensamos amas
cristãs e vacas leiteiras. João lembrou então os aposentos das corporações,
onde se costumam reunir caldeireiros, bate-folhas, barbeiros... Mas Jorge
considerou estes lugares demasiado próximos das gentes... Com razão. Deixassem
com ele, dizia, que haveria de amanhar sítio resguardado. Onde? No boqueirão do
Corpo Santo. Não estou a ver onde é. Ali adiante, passados os estaleiros da
Ribeira das Naus, uma angustura cega de janelas, na babugem do rio. Para lá se
dirigiram ao anoitecer e encontraram os quatro companheiros sentados num bote
varado, preso a uma argola da parede. Ao verem chegar o rei, apearam-se e,
desabituados, esboçaram a vénia, logo atalhados pelos gestos de Savachão:
então, então! Ficavam calados, depois de tornarem todos a sentar-se no barco,
interditos, sem saberem como se dirigir ao soberano. As vossas feridas são
saradas?, perguntou Savachão a quebrar-lhes
a tolheição.
Savachão
ainda anda de muleta ajudava Telo, mas é já só quase fingimento, que a perna
vai melhor. Notícias?, perguntou o rei. Não sei como falar..., contigo...,
adiantou Jorge. Vejo que Telo se acostumou. Fala. As feridas estão a
cicatrizar..., e o resto... Bem, no maior dos segredos, conseguimos dinheiro e
garantias de crédito junto de vários banqueiros estrangeiros... Podemos partir,
sem necessitarmos de..., olhou para Savachão e Telo: de que tendes vivido? De
esmolas, respondeu Telo. Telo é hábil, acrescentou Savachão, em deitar o
barrete ao chão. A minha perna tem ajudado.
Tudo
isso agora acabou, disse Cristóvão com raiva nos olhos. Não, amigos, não,
ripostou Savachão. Por enquanto, na cidade e no reino, teremos de continuar a
ser mendigos. Deixa-nos ao menos, disse Luís, arranjar-te cómodos condignos
para dormires... Temos boa palha nas cavalariças vazias de el-rei, atrás dos muros...
Olhou em redor a embarcação: este barco... Não o fretastes, não? Não, respondeu
Jorge. Estava aqui amarrado. Sentámo-nos nele. Ostentar riqueza será mau neste
transe. Quais são os teus planos?, perguntou João. Isto é uma violência e constante
agravo de nossas qualidades, disse Cristóvão, ... quanto mais da tua. Calculo o
que te vai na alma. Não tenho senão o que mereço. Até a morte seria alívio... Penso
que devemos sair do reino...» In Fernando Campos, A Ponte dos Suspiros,
1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.
Cortesia
de Difel/JDACT