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e wikipedia
O
Obscuro objecto de desejo
Um animal
perigoso
«(…) Em sua grande maioria, os
médicos portugueses desconheciam as descobertas científicas que começavam a
delinear-se pelo restante da Europa. Eles se limitavam a repetir os mestres
antigos (Aristóteles, Plínio, Galeno e Alberto, o Grande), dizendo que a matriz
ou madre é o lugar em cujo fundo se acham aqueles corpos vesiculares que os
antigos chamavam testículos e os modernos chamam ovários. Herdeiros da tradição
medieval, tais doutores insistiam em sublinhar a função reprodutiva da madre,
excluindo o prazer. A função do amor
Veneris dulce apellatur nem era lembrada. Não lhes interessava se a
mulher gozava ou não. A entranha, mal descrita e mal estudada,
comparada às peras, ventosas e
testículos, acabava por reduzir a mulher à sua bestialidade. Repetiam
igualmente, de mestres antigos como Platão, que, tal como um animal vivo e
irrequieto, animal errabundo, segundo Bernardo Pereira, o útero era capaz de
deslocar-se no interior do corpo da mulher, subindo até à sua garganta e
causando-lhe asfixia. Quando não se movimentava, emitia vapores ou fumos
capazes de infectar o cérebro, o coração, o fígado. Acreditava-se, ainda, que o
útero se alimentava de sangue e pneuma e que o espírito vital, emitido pelo
homem, encarregado da fecundação, chegava-lhe através de uma grande artéria que
desceria do coração ao longo da coluna vertebral. No processo de fecundação, a
fêmea era um elemento passivo. Comparada por alguns médicos à galinha, tinha
por exclusiva função portar os ovos.
Uma das características do útero
era a sua capacidade de amar apaixonadamente alguma coisa e de aproximar-se do
membro masculino por um movimento precipitado, para dele extrair o seu prazer.
Porém, o aspecto mais tocante da sua personalidade, segundo um médico, seria o
desejo inacreditável de conceber e procriar. Enfim, era como se as mulheres
portassem algo de vivo e incontrolável dentro delas! Ser assexuado, embora
tivesse clitóris, à mulher só cabia uma função: ser mãe. Ela carregou por quinze
séculos a pecha imposta pelo cristianismo: herdeira directa de Eva, foi
responsável pela expulsão do paraíso e pela queda dos homens. Para pagar o seu
pecado, só dando à luz entre dores. Os médicos, no século XVI, acabaram por definir o desejo
sexual como algo negativo e mais feminino do que masculino. O coito não era
necessário ao homem para a conservação da saúde, diziam. Mas, se a mulher fosse
privada de companhia masculina, ela se expunha a graves riscos. A prova era a sufocação
da madre, nas viúvas, freiras e solteironas: é uma fome ou sede desta tal
parte. Doença que só cessa com o socorro do macho.
Um
grande médico renascentista, o francês Ambroise Paré, ao diferenciar animais e
humanos, afirmava: as fêmeas dos animais fogem dos machos tão logo são
fecundadas; o contrário acontece às mulheres; pois elas os desejam para a
deleitação, e não somente para a multiplicação da espécie. Enfim, o prazer feminino
era considerado tão maldito que, no dia do Julgamento Final, as mulheres
ressuscitariam como homens: dessa forma, no santo estado masculino, não seriam
tentados pela carne funesta, reclamava santo Agostinho. Com essa pá de cal, as
mulheres foram condenadas por padres e médicos a ignorar, durante séculos, o
prazer. Entre os séculos XII e XVIII, a Igreja identificava, nas
mulheres, uma das formas do mal sobre a terra. Quer na filosofia, quer na moral
ou na ética do período, a mulher era considerada um ninho de pecados. Os mistérios
da fisiologia feminina, ligados aos ciclos da Lua, ao mesmo tempo em que seduziam
os homens, os repugnavam. O fluxo menstrual, os odores, o líquido amniótico, as
expulsões do parto e as secreções de sua parceira os repeliam. O corpo feminino
era considerado impuro». In Mary del Priore, Histórias íntimas,
Sexualidade e erotismo na história do Brasil, Editora Planeta do Brasil, São
Paulo, CDD-302-309-81, 2011, ISBN 978-857-665-608-1.
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