segunda-feira, 9 de março de 2020

Poema. Cinema. «Quando a actriz sofria, o medo do filme acabar acontecia quando tu bruscamente retiravas as tuas mãos das minhas…»


Cortesia de wikipedia e jdact

Cinema
«Já nã se embrulham os sonhos numa sala
de cinema. É o que sinto. Já não saio de casa para
entrar no desconhecido tenho ansiedades
abandonadas à sombra do sofá da minha sala.
É o que sinto. Tudo o que me parecia longe
afinal era uma matinê cheia de mundo.
Uma mulher nua num cavalo, camelos das arábias
atravessando desertos, naves inventando a
imaginação e o tempo a marcar as memórias
de cada um.

Quando terminava, o silêncio das cadeiras
vazias dizia: para a semana à mesma hora.
E era uma espera tão longa. O coração batia
acelerado dias e dias a fio até acontecer numa
tela enorme, aquele beijo do cowboy numa
rapariga mais bonita que o luar da meia-noite.
Quando ele a beijava, as minhas mãos,
na escuridão da sala, entrelaçavam as tuas.
Não havia mais mundo que o nosso.
Os suspiros do filme éramos nós
derramar açúcar um no outro.

Quando a actriz sofria, o medo do filme acabar
acontecia quando tu bruscamente retiravas as
tuas mãos das minhas, como que a dizer: este
filme já não é a dois. Eu dizia-te que lá fora,
quando as luzes da plateia se acenderem. A rua
será nossa. Que andaremos de braços dados em
passos demorados até à hora de estar em casa.
Que as horas marcadas, serão desenhadas por
nós. O coração não tem relógio.

Hoje, já não guardamos em segredo os bilhetes
que indicavam os números ímpares da fila F
e que nos resguardavam da má-língua indiscreta.
Ir ao cinema era marcar encontro no único sítio
onde todos estavam lado a lado. Na matinê das
16h30 aos domingos à tarde, onde os corações se
descobriam livros como os pássaros».
Poema de António Jorge Serafim, in As Novas Aventuras dos Tais Quais

Cortesia de a Casinha/JDACT