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«A coragem que vence o medo tem mais elementos de grandeza que aquela que
o não tem. Uma começa interiormente; outra é puramente exterior. A última faz
frente ao perigo; a primeira faz frente, antes de tudo, ao próprio temor dentro
da sua alma». In Fernando Pessoa
«(…) Até onde, eis pois a crucial questão. A primeira providência
objectiva seria sondar a ferida, averiguar-lhe a profundidade, e depois
estudar, definir e pôr em prática os processos adequados para colmatar a
brecha, nunca expressão alguma pôde ser tão rigorosa, por isso francesa, chega-se
a pensar que alguém a pensou um dia, ou inventou, para vir a ser usada, com
plena propriedade, quando a terra se rachasse. A sondagem, logo feita, registou
pouco mais de vinte metros, uma insignificância para os meios da moderna
engenharia de obras públicas. De Espanha e de França, do perto e do longe,
avançaram as betoneiras, as misturadoras, essas interessantes máquinas que, com
os seus movimentos simultâneos, fazem lembrar a terra no espaço, rotação,
translacção, e chegando ao ponto despejavam o betão, torrencial, doseado para o
efeito com grandes quantidades de pedra grossa e cimento de presa rápida.
Estava-se em plena operação de enchimento quando um perito imaginoso propôs que
se colocassem, como dantes se praticava nas feridas das pessoas, uns gatos,
grandes, de aço, que segurassem os bordos, ajudando, por assim dizer, e acelerando,
a cicatrização. A ideia foi aprovada pela comissão bilateral de emergência, as
siderurgias espanholas e francesas começaram imediatamente os estudos
necessários, liga, espessura e perfil do material, relação entre o tamanho da
unha que ficaria cravada no chão e o vão abrangido, enfim, pormenores técnicos
só para entendidos, aqui enunciados muito pela rama. A fenda engolia a torrente
de pedra e lama cinzenta como se fosse o rio Irati caindo para o interior da
terra, ouviam-se os ecos profundos, chegou-se a admitir a probabilidade de
haver lá em baixo um oco gigantesco, uma caverna, uma espécie de goela
insaciável, É que, se assim for, não vale a pena continuar, constrói-se uma
passagem por cima do buraco, se calhar é mesmo a solução mais fácil e económica,
chamam-se aí os italianos, que têm grande experiência de viadutos. Mas, ao cabo
de não se sabe quantas toneladas e metros cúbicos, a sonda assinalou fundo a
dezassete metros, depois a quinze, a doze, o nível do betão ia subindo,
subindo, a batalha estava ganha. Abraçavam-se os técnicos, os engenheiros, os
operários, os polícias, agitavam-se bandeiras, os locutores da televisão,
nervosos, liam o último comunicado e davam as suas próprias opiniões,
enaltecendo a luta titânica, a gesta colectiva, a solidariedade internacional
em acção, até de Portugal, esse pequeno país, saiu um comboio de dez
betoneiras, estrada fora, têm à sua frente uma longa viagem, mais de mil e
quinhentos quilómetros, esforço extraordinário, não vai ser preciso o betão que
trazem, mas a história registará o simbólico gesto.
Quando o
enchimento atingiu o nível da estrada, a alegria explodiu em delírio colectivo,
como numa passagem de ano, fogo-de-artifício, e corrida de S. Silvestre.
Abalaram os ares os claxons dos automobilistas que não tinham arredado pé mesmo
depois de desempanchadas as rodovias, os camiões libertavam os mugidos roucos
dos avertisseurs e das bocinas, e os helicópteros adejavam
gloriosamente por cima das cabeças, como serafins possessos de potências acaso
nada celestiais. Crepitaram incessantes as máquinas fotográficas, os operadores
da televisão aproximaram-se, dominando os nervos, e ali, rente aos bordos da
fenda que deixara de o ser, registaram grandes planos da superfície irregular
do betão, a prova da vitória do homem sobre um capricho da natureza. E foi
assim que os espectadores, longe dali, no conforto e segurança das suas casas,
recebendo em directo as imagens tomadas na fronteira franco-espanhola de
Collado de Pertuis, puderam ver, quando já riam e batiam palmas, e festejavam o
acontecimento como proeza sua, foi assim que puderam ver, sem quererem agora
acreditar nos seus próprios olhos, viram mover-se a superfície ainda mole do
betão e começar a descer, como se a massa enorme estivesse a ser sugada de
baixo, devagar mas irresistivelmente, até outra vez ficar à vista a brecha
escancarada.
A fenda não se tinha
alargado, e isso só podia significar uma coisa, que a junção das paredes já não
se fazia a vinte metros de fundo, como antes, mas a muitos mais, só Deus saberá
quantos. Os operadores recuaram, assustados, mas o dever profissional, tornado
instinto adquirido, manteve as câmaras a funcionar, trémulas sim, e o mundo
pôde ver os rostos alterados, o pânico insofreável, ouviam-se as exclamações,
os gritos, a fuga foi geral, em menos de um minuto apareceu deserta a área de
estacionamento, ficaram as betoneiras abandonadas, aqui e além algumas ainda a
funcionar, com as misturadoras girando, cheias de um betão que três minutos antes
deixara de ser preciso e agora se tornara inútil.
Pela primeira vez um
arrepio de medo perpassou na península e na próxima Europa. Em Cerbère, bem
perto dali, as pessoas, correndo para a rua premonitoriamente como o tinham
feito os seus cães, diziam umas para as outras, Estava escrito, quando eles
ladrassem acabava-se o mundo, e não era precisamente assim, escrito nunca
estivera, mas nos grandes momentos precisamos sempre de grandes frases, e esta,
Estava escrito, não sabemos que prestígio tem que ocupa o primeiro lugar nos
prontuários do estilo fatal. Temendo, com mais razões do que ninguém, o que
estava para acontecer, os habitantes de Cerbère começaram a abandonar a cidade,
em maciça migração para terras mais sólidas, talvez que o fim do mundo não
chegasse tão longe». In José Saramago,
A Jangada de Pedra, Editorial Caminho, 1986, 16ª Edição, Reunidos, Lisboa,
2010, ISBN 978-972-210-289-6.
Cortesia de
Caminho/JDACT