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«(…) O início dos trabalhos das
Cortes de Évora fora marcado para a manhã do dia 12. Pouco antes das nove horas
já findara a missa em S. Francisco e, atravessando o adro da igreja, virando
logo ali à esquerda, viam-se gentes vindas de muitas partes do reino. Começavam
a chegar ao paço os procuradores das terras que, enchendo a arcaria do piso
inferior e subindo uma escada larga e redonda, se iam instalando de pé, logo à
entrada da sala do trono, cujas paredes laterais mais não eram do que graciosas
janelas em arco de volta perfeita, de vidros pequenos, geometricamente coloridos,
deixando ver um gracioso jardim de ambos os lados. As cortinas vermelhas e
armoriadas que tapavam as portas conferiam mais cor à sala que, nessa manhã de
Novembro, tanto tinha sol como não, tanto se alegrava como entristecia, porque
o dia estava intermitente. Ao fundo, do lado oposto à entrada, estava o trono
com seu baldaquino adamascado de vermelho e bordejado de cordão de ouro. Os
nobres instalavam-se à esquerda do trono e, à direita, os clérigos, numa ordem
perfeitamente determinada e respeitada. O burburinho fazia-se ouvir para lá do
paço e do convento, mais acima, e só baixou de tom quando os guardas reais
içaram as lanças. João saía dos seus aposentos e dirigia-se para o salão. Nesta
ocasião solene fez-se preceder pelos arautos, que gritavam a compasso Aqui
vem El-Rei de Portugal!, e pelo rei-de-armas que, com grande pompa, levava
uma imponente e gigantesca bandeira de seda onde se viam as armas reais: os
sete castelos, as quinas, os besantes em aspa, como as chagas de Cristo, nos
escudetes já não derribados e as flores-de-lis retiradas.
Atrás, vinham os conselheiros,
entre os quais o chanceler Vasco Fernandes Lucena, a quem havia El-Rei
encomendado o discurso de abertura. Seguiam-se os desembargadores, os vedores
e, finalmente, um grupo numeroso e confuso, que incluía os restantes
conselheiros e muitos fidalgos da Casa Real. Entre eles, Henrique, e, a seu
lado, Rodrigo, que via pela primeira vez de perto a pessoa real, pelo que era
com grande respeito e emoção que ali se encontrava. Recordaria para sempre o
momento em que o Rei, ao sair dos seus aposentos para se dirigir a esta sala,
cumprimentava alguns dos fidalgos que o aguardavam para o acompanhar, lhes deu
a mão a beijar, num gesto de grande favor, e assim fez ao passar por Henrique e
depois por ele. Imitando seu pai, Rodrigo ajoelhara imediatamente e, tremendo, tomou
a régia mão e beijou-a como se disso dependesse a sua vida. Mantendo a posição
de joelhos, os fidalgos ergueram-se apenas quando o Rei prosseguiu o caminho, e
incorporaram-se depois no cortejo. No salão, ouvidos os arautos, imediatamente
cessou a vozearia. O Rei entrou na sala, atravessou o corredor central que se
formou imediatamente na direcção do trono. Foram então gritados Vivas! e
as exclamações de júbilo e espanto eram tão mais exuberantes quanto mais
distantes os municípios das cidades principais.
Alguns procuradores emocionaram-se
com a vista, primeira, por vezes, do seu Rei, do seu pai, do seu protector.
Alguns suavam, já pelo calor da sala, já pelo esforço que tinham de fazer para
se manterem em pé, por serem velhos, mancos ou doentes... Quanto a El-Rei,
alto, enxuto e bem feito, tinha o rosto comprido e barbudo. Os seus cabelos
castanhos e corredios mostravam já algumas cãs, que lhe davam grande contentamento
pela muita potestade que à sua dignidade real iam acrescentando. O nariz um
pouco comprido e derrubado, o seu rosto corado, demonstravam a sua predilecção
pelo ar livre e pela caça. Sobre os ombros trazia um manto feito de seda branca,
forrado de pele castanha e debruado com rica passamanaria de ouro. Tomou El-Rei
assento com elegância e pompa, colocando o manto sobre a perna direita e deixando
a descoberto a outra perna. Colocando uma das mangas um pouco acima do pulso,
dirigiu o olhar aos procuradores, aos clérigos e aos grandes do reino, a todos
e a cada um. Todos eles baixaram a cabeça imediatamente, em sinal de obediência
e de submissão. Para seu espanto, o duque de Bragança susteve o olhar por um
segundo ficando na impressão d’El-Rei uma sensação de desafio, ainda que ténue.
A um gesto seu, tomaram assento os que o podiam tomar, com alívio das cruzes e
das pernas: as dignidades eclesiásticas, os duques, os marqueses e os condes.
Todos os outros permaneceriam de pé». In Maria João Câmara, O Pecado e a Honra,
Oficina do Livro, Leya, 2012, ISBN 978-989-555-830-8.
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