A Tempestade
«(…) No dia seguinte, a fúria do
vento minguava e nós fomos costeando a Dalmácia, Argentina, Zara, Lissa,
Meleda, Cúrsula, terras sujeitas umas a Veneza e outras à senhoria de Aragusa.
Vinham-me à lembrança fragmentos de antigas e recentes leituras: a Dalmácia era
a pátria de São Jerónimo e também do papa mártir São Caio, da parentela do
imperador Diocleciano; Aragusa ou Ragusa, o antigo Epidauro, era ao presente
dos Turcos e chamava-se Dobrónica, cidade grandíssima, rica, muito nomeada
naquelas partes, terra de grandes tratos e mercadores, onde se fazem muitas
naus, as maiores e mais grossas de todo o Levante. É daqui o nosso padre
guardião, frei Bonifácio. Seguimos sempre ao longo da costa, o que amenizava a
viagem, pois tinham nossos olhos com que se entreterem. Que montes seriam
aqueles?, apontava frei Zedilho. Eu consultava o meu enquirídio e não demorava
muito a identificá-los: eram os montes Acroceráunios, muito afamados na
Antiguidade. Ah! Deles fazia memória São Jerónimo no segundo prólogo da Bíblia,
comentava o meu teólogo. Vinha depois a costa do Epiro, a que está ligada a
Macedónia, pátria de Alexandre Magno, do qual tantas grandezas contam tantos
escritores gregos e latinos. As línguas de todas estas terras são muito
diversas umas das outras, mas os Aragúsios e os Dalmacianos entendem-se bem
entre si pela contínua comunicação. Os Albaneses e os Epirotas usam comumente o
grego, mas, como presentemente estão submetidos aos Turcos, toda a gente
principal e nobre fala a língua turca. Estas informações colhi-as eu de um
marinheiro grego chamado Pérides, a quem frequentemente fazíamos perguntas
quando queríamos saber alguma coisa. Era muito sensível ao facto de a sua
pátria grega estar sob o domínio turco. Isolava-se amiúde junto à amurada a
olhar a linha da costa passar, os montes e vales, as lágrimas a desfiarem-lhe
pelas faces e cantando baixinho, só para si, saudosas melopeias que aprendera
em menino. Ansiava pelo dia em que a Grécia sua bem-amada recobrasse a
independência. Mal adivinhava eu, naquele tempo, que também me estava destinado
ter, a respeito do meu país, essa dolorosíssima experiência!... Contava-nos ele
factos nunca ouvidos. De todas as partes e províncias e em especial do Epiro,
da Macedónia e da Albânia, todas as pias de baptizar eram obrigadas cada ano a
dar certas crianças de tributo ao grão-turco... Dar crianças ao turco?,
admirava-se, escandalizado, frei Zedilho. Para quê?, secundava eu. Que as
mandava criar com muito cuidado e diligência, doutrinar na bruta e maldita
seita do sancarrão Mafamede e instruir em todas as boas artes militares: na
cavalaria, no pelejar com toda a sorte de armas. Com que fim?
Criavam assim um corpo militar de
eleição, no qual residia toda a força e potência humana do grão-turco. Era com
eles que fazia a guerra a todo o mundo..., e conquistava tantos reinos e
províncias como tinha tomado aos cristãos, por nossos pecados, rematava eu
tomando calor no que dizia, e pela ambição e cobiça de alguns príncipes
católicos, se este nome lhes cabia, que procurando com injustas guerras o
alheio perdiam o próprio... Aqueles eram os guerreiros a que se chamava
janízaros. Mas não era só nas guerras que o grão-turco deles se servia.
Usava-os também no governo da sua corte e de todos os seus reinos e províncias.
Segundo o esforço, a prudência, a valentia e virtude que cada um demonstrava
ia-lhes dando os ofícios e honras, dignidades e prêmios que lhe parecia
merecerem: a uns fazia baxás, que eram uma espécie de vizo-reis de reinos e
províncias, a outros sanjacos, que eram governadores das cidades e seus termos,
a outros berebés, chauses,
cádis, que eram como justiças-mores das terras onde residiam...
São grandes senhores!, disse frei
Zedilho. Sim, eram! Mas, com o serem, continuavam escravos do grão-turco e se
não cumpriam os seus ofícios e governos como deviam, não se ensaiava nada em
tirá-los do cargo e com facilidade os mandava matar, se lhe parecia, sem haver
quem lho ousasse contradizer. Se porém serviam fiel e louvavelmente,
promovia-os de uma dignidade pequena a outra maior. Ordinariamente não dava
estas funções senão por três anos, já se via com que intenção...
Tínhamos
passada toda a Albânia com a diversidade dos seus portos, cidades e lugares,
entre os quais a famosa Castória, edificada dentro do mar como a rica Veneza, e
a inexpugnável Valona, onde ao presente o grão-turco tem a sua esquadra de
galés e naus de que se serve nas batalhas navais. Pérides, com o seu olhar
habituado a perscrutar o horizonte onde começava a sombrear a mancha de uma
ilha, disse: Tenho de vos deixar. Estamos a chegar a Corfu. Bateu-me mais forte
o coração e senti subitamente um grande medo do que iria encontrar naquela
ilha. Não tardou muito que a víssemos com nitidez, suas muralhas edificadas
sobre a rocha viva, e pouco tempo depois dávamos entrada pelo estreitíssimo
canal que vai entre a ilha e a terra dos Turcos, tão estreito que as
embarcações que entram não podem fazer manobra para se voltarem e necessitam de
um vento para entrar e outro para sair. Por isso muitas vezes sucede estarem
ali detidas sem poderem fazer viagem, salvo sendo ajudadas pelas galés que a
senhoria veneziana ali tem continuamente para guarda e defensão da ilha. A
muita proximidade da terra dos Turcos faz que estes a cobicem e mais que uma
vez tentaram tomá-la, mas sem resultado, pois Veneza tem sabido defendê-la, com
a guarnição militar dos seus dois fortíssimos castelos roqueiros sobre o mar e
as suas cerca de trinta galés». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel,
1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.
Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT
A Arte da Escrita, Fernando Campos, JDACT, Literatura,