quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

Fernando Campos. A Casa do Pó. «São grandes senhores!, disse frei Zedilho. Sim, eram! Mas, com o serem, continuavam escravos do grão-turco e se não cumpriam os seus ofícios e governos como deviam, não se ensaiava nada em tirá-los do cargo e com facilidade…»

 

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A Tempestade

«(…) No dia seguinte, a fúria do vento minguava e nós fomos costeando a Dalmácia, Argentina, Zara, Lissa, Meleda, Cúrsula, terras sujeitas umas a Veneza e outras à senhoria de Aragusa. Vinham-me à lembrança fragmentos de antigas e recentes leituras: a Dalmácia era a pátria de São Jerónimo e também do papa mártir São Caio, da parentela do imperador Diocleciano; Aragusa ou Ragusa, o antigo Epidauro, era ao presente dos Turcos e chamava-se Dobrónica, cidade grandíssima, rica, muito nomeada naquelas partes, terra de grandes tratos e mercadores, onde se fazem muitas naus, as maiores e mais grossas de todo o Levante. É daqui o nosso padre guardião, frei Bonifácio. Seguimos sempre ao longo da costa, o que amenizava a viagem, pois tinham nossos olhos com que se entreterem. Que montes seriam aqueles?, apontava frei Zedilho. Eu consultava o meu enquirídio e não demorava muito a identificá-los: eram os montes Acroceráunios, muito afamados na Antiguidade. Ah! Deles fazia memória São Jerónimo no segundo prólogo da Bíblia, comentava o meu teólogo. Vinha depois a costa do Epiro, a que está ligada a Macedónia, pátria de Alexandre Magno, do qual tantas grandezas contam tantos escritores gregos e latinos. As línguas de todas estas terras são muito diversas umas das outras, mas os Aragúsios e os Dalmacianos entendem-se bem entre si pela contínua comunicação. Os Albaneses e os Epirotas usam comumente o grego, mas, como presentemente estão submetidos aos Turcos, toda a gente principal e nobre fala a língua turca. Estas informações colhi-as eu de um marinheiro grego chamado Pérides, a quem frequentemente fazíamos perguntas quando queríamos saber alguma coisa. Era muito sensível ao facto de a sua pátria grega estar sob o domínio turco. Isolava-se amiúde junto à amurada a olhar a linha da costa passar, os montes e vales, as lágrimas a desfiarem-lhe pelas faces e cantando baixinho, só para si, saudosas melopeias que aprendera em menino. Ansiava pelo dia em que a Grécia sua bem-amada recobrasse a independência. Mal adivinhava eu, naquele tempo, que também me estava destinado ter, a respeito do meu país, essa dolorosíssima experiência!... Contava-nos ele factos nunca ouvidos. De todas as partes e províncias e em especial do Epiro, da Macedónia e da Albânia, todas as pias de baptizar eram obrigadas cada ano a dar certas crianças de tributo ao grão-turco... Dar crianças ao turco?, admirava-se, escandalizado, frei Zedilho. Para quê?, secundava eu. Que as mandava criar com muito cuidado e diligência, doutrinar na bruta e maldita seita do sancarrão Mafamede e instruir em todas as boas artes militares: na cavalaria, no pelejar com toda a sorte de armas. Com que fim?

Criavam assim um corpo militar de eleição, no qual residia toda a força e potência humana do grão-turco. Era com eles que fazia a guerra a todo o mundo..., e conquistava tantos reinos e províncias como tinha tomado aos cristãos, por nossos pecados, rematava eu tomando calor no que dizia, e pela ambição e cobiça de alguns príncipes católicos, se este nome lhes cabia, que procurando com injustas guerras o alheio perdiam o próprio... Aqueles eram os guerreiros a que se chamava janízaros. Mas não era só nas guerras que o grão-turco deles se servia. Usava-os também no governo da sua corte e de todos os seus reinos e províncias. Segundo o esforço, a prudência, a valentia e virtude que cada um demonstrava ia-lhes dando os ofícios e honras, dignidades e prêmios que lhe parecia merecerem: a uns fazia baxás, que eram uma espécie de vizo-reis de reinos e províncias, a outros sanjacos, que eram governadores das cidades e seus termos, a outros berebés, chauses, cádis, que eram como justiças-mores das terras onde residiam...

São grandes senhores!, disse frei Zedilho. Sim, eram! Mas, com o serem, continuavam escravos do grão-turco e se não cumpriam os seus ofícios e governos como deviam, não se ensaiava nada em tirá-los do cargo e com facilidade os mandava matar, se lhe parecia, sem haver quem lho ousasse contradizer. Se porém serviam fiel e louvavelmente, promovia-os de uma dignidade pequena a outra maior. Ordinariamente não dava estas funções senão por três anos, já se via com que intenção...

Tínhamos passada toda a Albânia com a diversidade dos seus portos, cidades e lugares, entre os quais a famosa Castória, edificada dentro do mar como a rica Veneza, e a inexpugnável Valona, onde ao presente o grão-turco tem a sua esquadra de galés e naus de que se serve nas batalhas navais. Pérides, com o seu olhar habituado a perscrutar o horizonte onde começava a sombrear a mancha de uma ilha, disse: Tenho de vos deixar. Estamos a chegar a Corfu. Bateu-me mais forte o coração e senti subitamente um grande medo do que iria encontrar naquela ilha. Não tardou muito que a víssemos com nitidez, suas muralhas edificadas sobre a rocha viva, e pouco tempo depois dávamos entrada pelo estreitíssimo canal que vai entre a ilha e a terra dos Turcos, tão estreito que as embarcações que entram não podem fazer manobra para se voltarem e necessitam de um vento para entrar e outro para sair. Por isso muitas vezes sucede estarem ali detidas sem poderem fazer viagem, salvo sendo ajudadas pelas galés que a senhoria veneziana ali tem continuamente para guarda e defensão da ilha. A muita proximidade da terra dos Turcos faz que estes a cobicem e mais que uma vez tentaram tomá-la, mas sem resultado, pois Veneza tem sabido defendê-la, com a guarnição militar dos seus dois fortíssimos castelos roqueiros sobre o mar e as suas cerca de trinta galés». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

A Arte da Escrita, Fernando Campos, JDACT, Literatura,