sábado, 12 de fevereiro de 2022

O Don Tranquilo. Mikhail Cholokhov. «O cossaco Prokófi Melekhov havia regressado à aldeia após a penúltima campanha da Turquia. Do país turco trouxera ele uma mulher, uma mulherzinha pequena, toda enrolada num xaile»

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«A propriedade dos Melekhoves ficava mesmo à ponta A da aldeia. A portinha da corte do gado dava para o norte, para o lado do Don. Descida uma ladeira de oito ságenas (Medida equivalente a 2,13 metros) entre blocos de greda, verdes de musgo, estava-se na margem. Um tapete de conchas nacaradas, uma orla cinzenta e descontínua de seixos beijados pelas ondas e depois, espumoso e crespo do vento, negro de azeviche, o Don. A leste, para lá das alas de salgueiros, era a estrada dos atamanes (Chefe cossaco): absinto acinzentado, a erva castanha e vivaz dos caminhos, pisada pelos cascos dos cavalos, uma capelinha na encruzilhada e, por trás dela, a estepe, que uma bruma movediça toldava. Ao sul, a crista de greda da colina. A oeste, a estrada que atravessava a praça e ia dar aos prados próximos do rio.

O cossaco Prokófi Melekhov havia regressado à aldeia após a penúltima campanha da Turquia. Do país turco trouxera ele uma mulher, uma mulherzinha pequena, toda enrolada num xaile. Escondia a cara e só de raro em raro mostrava os olhos selvagens e angustiados. Os bordados multicolores do seu xaile de seda, impregnado de perfumes longínquos e desconhecidos, excitavam a inveja das mulheres da aldeia. Como a cativa turca evitasse os pais de Prokófi, o velho Melekhov não tardou a dar ao filho a parte que lhe cabia nos bens familiares. Nunca lhe perdoou e morreu sem lhe ter posto os pés em casa.

Prokófi rapidamente se instalou: os carpinteiros ergueram-lhe uma casa, ele próprio cravou a paliçada da corte do gado e, ao chegar o Outono, pegou na mulher e levou-a, muito encolhida, para o seu novo lar. Ao atravessar com ela a aldeia, atrás do carro em que transportava os haveres, toda a gente, miúda e graúda, saiu à rua a vê-los. Os homens sorriam por entre a barba, as mulheres interpelavam-se aos brados, uma horda de crianças lambuzadas guinchava atrás dele, mas ele, de túnica aberta de par em par, caminhava com lentidão, como se seguisse o sulco de uma charrua, apertando na mão negra a mão frágil da mulher e alçando orgulhosamente a cabeça, com a sua poupa de cabelos brancos; abaixo dos malares, as faces contraíam-se-lhe, e o suor perlava-lhe a fronte de pedra, imóvel como sempre[UdW1] . Desde então, foi raro verem-no na aldeia; nem sequer frequentava a praça do mercado. Vivia arredado, na sua casa à beira do Don, como um bicho bravo. Contavam-se a respeito dele histórias estranhas. Os garotos que guardavam os vitelos nos prados pretendiam ter visto Prokófi, ao fim de certas tardes, à claridade última do Sol, levar a mulher nos braços até ao cabeço tártaro (trata-se de um cómoro funerário antigo). Depunha-a ao alto, de costas contra a pedra porosa, roída pelos séculos, sentava-se-lhe ao lado, e ali se quedavam ambos longo espaço olhando a estepe. Olhavam-na até o crepúsculo se extinguir. Depois, Prokófi enrolava a mulher no seu zipune (Manto camponês, em geral de burel grosso, que desce abaixo dos joelhos) e ao colo a recolhia a casa. Perdia-se a aldeia em conjecturas, buscando para aquele procedimento, extraordinário uma explicação, a força de falarem no caso, esqueciam-se as mulheres de catar os piolhos. Dividiam-se as opiniões destas acerca da mulher de Prokófi: opinavam umas ser ela de uma beleza como nunca se vira, diziam outras o contrário. Tudo se esclareceu no dia em que uma mais atrevida, Mavra, cujo marido estava na tropa, foi a casa de Prokófi a pretexto de lhe pedir fermento fresco para fazer kvass (Bebida fermentada russa). Enquanto Prokófi o foi buscar à loja, Mavra examinou a turca, que se lhe afigurou a última das insignificantes.

Momentos depois, na rua, Mavra, encarnada, de lenço de esguelha na cabeça, perorava no meio de um grupo de mulheres. Sempre gostava que me dissessem o que ele lhe encontrou que prestasse. Se ao menos fosse uma mulher! Mas aquilo!... Não tem barriga, não tem rabo. É uma vergonha. Qualquer rapariguita nossa tem mais corpo. Tem uma cinturinha de vespa; fácil seria parti-la em duas. E os olhos dela? Pretos, enormes, rebola-os como u demónio, Deus me perdoe. E cuido que está para ter um filho, e não tarda, vou jurá-lo. Sério? Um filho?, admiraram-se as mulheres.

Acho que já não sou criança nenhuma: já sou mãe de três. E de cara como é ela? De cara? Amarela. Tem os olhos tristes: está claro que não deve ser agradável viver em terra alheia. Mas ainda não e tudo, minhas filhas: anda com umas calças do Prokófi. Oh!..., exclamaram com indignação as mulheres todas ao mesmo tempo. Vi-a eu de calças, com os meus olhos. Devem ser algumas calças dele, de trazer. Usa uma camisa comprida e por baixo da camisa as calças, enfiadas nas meias. Quando isto vi, julguei cair para o lado... » In Mikhail Cholokhov, O Don Tranquilo I, Livros do Brasil, Colecção Dois Mundos, 1983, S/ISBN.

Cortesia LdoBrasil/CdoisMundos/JDACT

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