A Chegada da Inquisição (maldita) 1490-1491
Zarita
«(…) Talvez eu conheça essa
pessoa, observou ele. Dias atrás, fui chamado por uma vizinha para cuidar de
uma mulher que, segundo ela, estava gravemente doente. A vizinha me disse que o
marido dessa mulher fora executado e que o filho dela havia desaparecido, não
voltou para casa, e por isso não havia ninguém para cuidar dela. Peguei minha
bolsa e a coloquei diante dele. Pode pegar o dinheiro necessário para comprar
remédios para ela e pagar pelo tempo gasto para curá-la. Ele pendeu a cabeça
para um lado e me inspecionou. Isso é um acto de misericórdia, ou de uma
consciência pesada?, perguntou tranquilamente. Atrás do véu, meu rosto
enrubesceu de vergonha e não consegui responder. Teria ele ouvido a história de
como o mendigo havia morrido? Teria me reconhecido como a filha do magistrado? Não
importa. Ele pareceu chegar a uma decisão. Eu a levarei até ela. A mulher
estava deitada num catre de palha num quarto do andar superior de uma casa a
duas ruas de distância. Quando entramos, algo se moveu apressado no canto mais
distante, fazendo a mulher se agitar e gritar. O médico se curvou sobre ela e
lhe falou rapidamente numa língua desconhecida para mim. Perto da porta, Garci
voltou a se benzer. O médico a ergueu e a ajudou a tomar um líquido de uma
garrafa que havia levado. Então ela afundou novamente na cama improvisada, seu
corpo nada mais do que uma trouxa de ossos. Ela a conhece?, indagou-me o
médico. Sacudi a cabeça, negando.
Não faria qualquer diferença,
disse. Ela está distante demais da capacidade de reconhecer alguém. Ele puxou o
cobertor sobre ela e nos conduziu para fora do quarto. Novamente ofereci-lhe
minha bolsa. A mulher está morrendo, admitiu. Não posso curá-la. Ninguém pode.
A boa vizinha lhe traz todos os dias uma sopa rala e um pouco de água, pois ela
não consegue ingerir nada além disso, e eu venho diariamente lhe dar um opiato
para amenizar sua dor durante a noite. Ergueu os olhos e encarou os meus atrás
do véu. Guarde seu dinheiro e gaste-o onde for capaz de ajudar os vivos. Olhou
a rua de cima a baixo. Sua insinuação foi óbvia. Depois que ele nos deixou,
virei-me e falei para Garci: Precisamos tirá-la daqui, para longe dos bichos
que infestam essa casa. Se movimentá-la, ela morrerá, disse Garci. Ela morrerá
de qualquer maneira. Vamos ajudá-la a morrer em melhores condições do que
estas. Não podemos levá-la para sua casa! Garci ficou horrorizado. Eu sabia disso. Meu
pai não admitiria tal intrusão. Não, falei, vamos levá-la para um lugar
tranquilo onde ela será tratada com amor. Portanto, foi no convento-hospital de
minha tia Beatriz que ajudei a cuidar da esposa do mendigo durante as últimas
semanas de sua vida.
No passado talvez eu conseguisse
persuadir, com adulações, meu pai a deixar a mulher moribunda ser trazida para
nossa casa, ao menos para os aposentos dos criados acima dos estábulos, pois
muitas vezes bajulava-o para que ele concordasse com algo que havia proibido
inicialmente. Minha influência, porém, diminuía à medida que a condessa Lorena
Braganza se tornava uma presença quase constante em minha casa. Eu estava tão
envolvida com minhas visitas ao convento-hospital para cuidar da esposa do
mendigo que se passou mais ou menos um mês antes de me dar conta da extensão do
poder de Lorena sobre meu pai. Certo dia, ao chegar em casa, vi que as nossas cortinas
pretas de luto haviam sido retiradas das janelas. Fui falar com Serafina e a encontrei
guardando-as em caixas. Seu rosto não mostrou qualquer emoção quando lhe
perguntei porque fizera isso. Estamos apenas na metade de Dezembro, aleguei. Ainda
não se passaram nem seis meses desde a morte de minha mãe. A ideia não foi
minha, respondeu. Seu paizinho me mandou fazer isso. Em seguida, acrescentou: Acredito
que a condessa Lorena Braganza deve ter sugerido isso a ele. Ela acha que a
casa precisa de alegria para a época de Natal». In Theresa Breslin, Prisioneira
da Inquisição, 2010, Galera Record, 2014-2015, ISBN 978-850-110-256-0.
Cortesia de GRecord/JDACT
JDACT, Theresa Breslin, Literatura, Espanha,