segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

O Exército Perdido de Cambises. Paul Sussman. «Ela calçou um par de luvas de couro grosso e também óculos de protecção, pois a cobra poderia, e foi de facto o que fez, cuspir veneno»

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Londres, meses mais tarde

«(…) A dra. Tara Mullray afastou uma mecha de cabelo cor de cobre dos olhos e seguiu em frente, caminhando pela plataforma suspensa. As lâmpadas tornavam o ambiente muito quente e um lustre de suor formou-se sobre a sua testa, de pele macia e pálida. Abaixo, através dos orifícios de ventilação nos topos dos tanques, relanceou os olhos sobre as cobras, porém não lhes deu atenção maior do que as cobras a ela. Já trabalhava no viveiro de répteis fazia uns quatro anos, e qualquer novidade sobre seus habitantes já se esgotara muito tempo atrás. Ela passou pela píton africana, pela Bit arietans, pela víbora Echix pyramidum e pela víbora do Gabão, detendo-se finalmente acima da naja. A serpente estava encolhida no canto do seu tanque, porém, assim que ela se aproximou, levantou a cabeça, a língua vibrando, o seu corpo grosso, marrom-oliva, movendo-se de um lado para o outro como um metrónomo. Olá, Joey, disse ela, deixando no chão o depósito e o gancho de serpentes que vinha carregando e acocorando-se na plataforma. Tudo bem com você? A cobra testou o lado interno da tampa do tanque, irrequieta. Ela calçou um par de luvas de couro grosso e também óculos de protecção, pois a cobra poderia, e foi de facto o que fez, cuspir veneno.

Certo, você é um amor de garoto,  disse ela, agarrando o gancho. Hora de tomar o seu remédio. Ela se inclinou à frente e soltou a tampa do tanque, inclinando-se para trás, quando a cabeça da cobra se ergueu para aproximar-se dela, suas aletas ligeiramente inchadas. Com movimentos precisos, tantas e tantas vezes ensaiados, ela agarrou o pegador da tampa do depósito, prendeu a cobra no gancho e, mantendo os olhos sobre ela o tempo todo, soltou-a já dentro do depósito, tampando-o rapidamente. Do interior do depósito veio um suave rumor rastejante, produzido pela cobra, que agora explorava seu novo ambiente. É para o seu próprio bem, Joey, disse ela. Não vá ficar zangado. A naja era a única da colecção de que ela não gostava. Com as outras, mesmo a taipan, ela se sentia perfeitamente à vontade. Mas a naja sempre a deixava nervosa. Era astuciosa e agressiva, e tinha um péssimo temperamento. Joey a tinha picado uma vez, coisa de um ano atrás, enquanto ela o removia do tanque para limpeza. Ela a tinha fisgado muito por baixo, no corpo, e a serpente de pescoço negro conseguira girar e dar o bote sobre as costas de sua mão desprotegida. Felizmente foi apenas uma picada enxuta, sem injecção de veneno, mas bastou para abalá-la.

Em quase dez anos trabalhando com cobras, nunca fora picada. E, desde então, passou a tratar a naja com a máxima cautela, usando luvas quando tinha de lidar com ela, cuidado que não tomava com as demais. Verificou a tampa para se assegurar de que estivesse bem fechada e, erguendo o depósito, fez o caminho de volta pela passarela, atenta a cada passo, ao descer as escadas e depois atravessando um longo corredor até ao seu escritório. Podia sentir a cobra movendo-se no interior do depósito e isso a fez diminuir as passadas, tentando não balançá-la demais. Não havia porque perturbar a serpente mais do que o necessário.

No escritório, Alexandra, sua assistente, já a aguardava. Juntas, removeram a cobra do depósito e a colocaram sobre um banco. Alexandra mantendo-a esticada enquanto Tara inclinava-se para examiná-la. Já devia ter cicatrizado, suspirou, observando uma área na metade da extensão das costas da cobra, onde as escamas estavam inchadas e feridas. Deve ter esfregado as costas na rocha novamente. Acho que deveríamos deixar o seu tanque descoberto por enquanto, para ela melhorar. Retirou um pouco de anti-séptico do armário e começou gentilmente a untar o ferimento. A língua da cobra vibrou de novo, entrando e saindo, e os olhos pretos levantaram-se para ela ameaçadoramente. A que horas é o seu voo?, perguntou Alexandra. Às seis, respondeu Tara, olhando para o relógio na parede. Preciso sair logo que termine isto aqui. Gostaria que o meu pai morasse no exterior. Faz a relação parecer muito mais exótica. Tara sorriu. Você poderia chamar a minha relação com meu pai de muitas coisas, Alex, mas não de exótica. Tome cuidado com a cabeça dela, agora. Ela acabou de limpar a área afectada e, espremendo sobre o dedo um pouco de creme, espalhou-o ao longo do flanco da cobra. Enquanto eu estiver fora ela vai precisar ser limpa dia sim, dia não, certo? E continue com os antibióticos até sexta feira». In Paul Sussman, O Exército Perdido, 2005, Bertrand Editora, 2016, ISBN 978-972-253-057-6.

Cortesia de BertrandE/JDACT

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