Londres, meses mais tarde
«(…) A dra. Tara Mullray afastou
uma mecha de cabelo cor de cobre dos olhos e seguiu em frente, caminhando pela plataforma
suspensa. As lâmpadas tornavam o ambiente muito quente e um lustre de suor
formou-se sobre a sua testa, de pele macia e pálida. Abaixo, através dos
orifícios de ventilação nos topos dos tanques, relanceou os olhos sobre as
cobras, porém não lhes deu atenção maior do que as cobras a ela. Já trabalhava no
viveiro de répteis fazia uns quatro anos, e qualquer novidade sobre seus
habitantes já se esgotara muito tempo atrás. Ela passou pela píton africana,
pela Bit arietans, pela víbora Echix pyramidum e pela víbora do Gabão,
detendo-se finalmente acima da naja. A serpente estava encolhida no canto do
seu tanque, porém, assim que ela se aproximou, levantou a cabeça, a língua
vibrando, o seu corpo grosso, marrom-oliva, movendo-se de um lado para o outro
como um metrónomo. Olá, Joey, disse ela, deixando no chão o depósito e o gancho
de serpentes que vinha carregando e acocorando-se na plataforma. Tudo bem com
você? A cobra testou o lado interno da tampa do tanque, irrequieta. Ela calçou
um par de luvas de couro grosso e também óculos de protecção, pois a cobra poderia,
e foi de facto o que fez, cuspir veneno.
Certo, você é um amor de garoto, disse ela, agarrando o gancho. Hora de tomar o
seu remédio. Ela se inclinou à frente e soltou a tampa do tanque, inclinando-se
para trás, quando a cabeça da cobra se ergueu para aproximar-se dela, suas
aletas ligeiramente inchadas. Com movimentos precisos, tantas e tantas vezes
ensaiados, ela agarrou o pegador da tampa do depósito, prendeu a cobra no gancho
e, mantendo os olhos sobre ela o tempo todo, soltou-a já dentro do depósito,
tampando-o rapidamente. Do interior do depósito veio um suave rumor rastejante,
produzido pela cobra, que agora explorava seu novo ambiente. É para o seu
próprio bem, Joey, disse ela. Não vá ficar zangado. A naja era a única da colecção
de que ela não gostava. Com as outras, mesmo a taipan, ela se sentia perfeitamente
à vontade. Mas a naja sempre a deixava nervosa. Era astuciosa e agressiva, e
tinha um péssimo temperamento. Joey a tinha picado uma vez, coisa de um ano
atrás, enquanto ela o removia do tanque para limpeza. Ela a tinha fisgado muito
por baixo, no corpo, e a serpente de pescoço negro conseguira girar e dar o
bote sobre as costas de sua mão desprotegida. Felizmente foi apenas uma picada
enxuta, sem injecção de veneno, mas bastou para abalá-la.
Em quase dez anos trabalhando com
cobras, nunca fora picada. E, desde então, passou a tratar a naja com a máxima
cautela, usando luvas quando tinha de lidar com ela, cuidado que não tomava com
as demais. Verificou a tampa para se assegurar de que estivesse bem fechada e,
erguendo o depósito, fez o caminho de volta pela passarela, atenta a cada
passo, ao descer as escadas e depois atravessando um longo corredor até ao seu
escritório. Podia sentir a cobra movendo-se no interior do depósito e isso a fez
diminuir as passadas, tentando não balançá-la demais. Não havia porque
perturbar a serpente mais do que o necessário.
No escritório, Alexandra, sua
assistente, já a aguardava. Juntas, removeram a cobra do depósito e a colocaram
sobre um banco. Alexandra mantendo-a esticada enquanto Tara inclinava-se para
examiná-la. Já devia ter cicatrizado, suspirou, observando uma área na metade
da extensão das costas da cobra, onde as escamas estavam inchadas e feridas. Deve
ter esfregado as costas na rocha novamente. Acho que deveríamos deixar o seu
tanque descoberto por enquanto, para ela melhorar. Retirou um pouco de
anti-séptico do armário e começou gentilmente a untar o ferimento. A língua da
cobra vibrou de novo, entrando e saindo, e os olhos pretos levantaram-se para ela
ameaçadoramente. A que horas é o seu voo?, perguntou Alexandra. Às seis,
respondeu Tara, olhando para o relógio na parede. Preciso sair logo que termine
isto aqui. Gostaria que o meu pai morasse no exterior. Faz a relação parecer
muito mais exótica. Tara sorriu. Você poderia chamar a minha relação com meu
pai de muitas coisas, Alex, mas não de exótica. Tome cuidado com a cabeça dela,
agora. Ela acabou de limpar a área afectada e, espremendo sobre o dedo um pouco
de creme, espalhou-o ao longo do flanco da cobra. Enquanto eu estiver fora ela
vai precisar ser limpa dia sim, dia não, certo? E continue com os antibióticos
até sexta feira». In Paul Sussman, O Exército Perdido, 2005, Bertrand Editora,
2016, ISBN 978-972-253-057-6.
Cortesia de BertrandE/JDACT
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