«(…) Diziam os vingativos que as tais fofoqueiras teriam todos os traumas causados por elas revelados nos seus enterros, escritos nas suas línguas, que se estenderiam como pergaminhos, contando os seus males. Nas suas mortes, as línguas das fofoqueiras se rebelariam e sairiam dos seus corpos. Iriam ao lado do caixão, em caçambas, carroças, carrocerias, dependendo do tamanho da fofoca e da destruição causada por elas. Cheirariam tão mal que ninguém mais, nem os seus poucos entes queridos, as acompanharia até ao túmulo. Elas, as senhoras donas das suas línguas, quando ouviam tais pragas, paravam por algum tempo a sua compulsão, rezavam dezenas de novenas… mas logo caíam no vício novamente. A sua língua será enterrada numa carreta, fedendo como ovo podre, gritava um e outro, depois de qualquer fofoca descoberta. Titia Margarida achava que estava certa nas suas escolhas, os seus seios e pernas permaneciam firmes e esticados, arrebatadores e nocauteadores. E as suas coxas não podiam ser mostradas em qualquer dos cantos da cidade. Ela obedecia de pronto à picuinha da fofoca antes de ela começar, assim evitava qualquer mote. O invejado ditava as regras, e titia não as testava. Talvez estivesse realmente na maturidade do relacionamento formador de família, que não permite caçar formigas nem pular horas, se encontrando com o nada. Poderia dormir com os filhos nas ideias, enquanto nós, muitas vezes, dormíamos em cima de um ingazeiro velho, olhando os seus frutos que se assemelhavam a cobras, cada um com o seu galho largo e aprazível servindo de abraço. De madrugada, ele se balançava, e o barulho das folhas era sombrio, desmanchava lendas que contávamos baixinho como um remédio de brincar que produzia arrepios, mas que era também acalentador. Batia no íntimo fantasmagórico dos pântanos e no ninar da tarde da criança mais tranquila.
Cheirava a sombra e ao que era
escondido, nunca claro o bastante. As estrelas relaxadas e exibidas. Na luz de
Agosto, no pôr do sol, tons de laranja coloriam a todos e a tudo. O amarelo
dourado ferrugem, quando chegava, era como se fritasse o final da tarde. Durante
o pôr do sol, era possível ver o outro lado do mundo logo ali, até o cheiro podíamos
sentir: cheiro de palavras deixadas de molho e saídas estufadas, façudas, esperadas
em frente ao forno de tantas horas. A molecadinha juntava teorias: que a noite tinha
assassinado o dia, ou que as cores que nos invadiam eram dos estágios da briga
e da morte dele. Contavam os detalhes. Em cima do ingazeiro, narrando como um
homem de circo, titia Florinda fazia as honras: o amarelo era o começo do inflamado,
o início da grande luta; o roxo, a primeira punhalada, seguida da facada
mortal; o vermelho, o seu sangue derramado no horizonte; e, por último, a
penumbra da escuridão: a noite retirando o corpo do dia, jogando-o no precipício
do outro lado do mundo e tomando o seu lugar de uma vez. Para matar o dia, a noite
usava um punhal especial, cravejado de brilhantes que, depois do feito, se
distribuíam em espécimes conhecidas como estrelas. O céu dali é mais bonito,
mais largo e profundo do que em qualquer outro lugar. Enquanto um contava a
saga da luta entre os dois seres gigantes, a noite e o dia, vez por outra eu
contava a minha versão:
Nossa
Senhora borda o maior céu para nós, num tecido que não se anuncia em acabar. É
como se existisse um céu para cada noite e para cada lugar, para nos fazer companhia.
Nossa Senhora nos deu este. O dia não morre, ela apenas o tapa para dormirmos
num tecido grosso e milenar. Os furinhos no pano velho fazem com que a luz o atravesse
e não nos deixe totalmente no breu. Titia Florinda ria dessa história e fazia
questão de contá-la a todos os vizinhos, junto com a resposta dela, claro: Nossa
Senhora tem mais o que fazer do que ficar bordando, bordando. Eu caía do sonho
sempre que ela dizia isso. Quando acordava, os tempos eram cheios. O dia não se
adiantava nem atrasava, tudo era visto com o espanto de quem descobre coisas
novas a todo instante. Era cheirado e sentido honestamente, demoradamente. As
coisas em tamanhos enormes, da casa às frutas. Acho que, com os anos, as nossas
energias de observação diminuem, junto com o olfato, o tacto, a visão e a
energia vital, e a nossa percepção vai-se apagando na distracção e nos
afazeres. Perdemos a amplitude da infância, que nos faz perceber os detalhes
puros e a enormidade das coisas. Num lado afastado do grande quintal, que se
emendava com o jardim, havia mangueiras centenárias. Na época dos seus frutos,
o chão se pintava de mangas e cheiros: coquinho, espada, bourbon, sabina, boi e
abelhas de todos os tipos. Besouros, uns bichos do mato e, no alto das suas
copas frondosas, araras e outros pássaros que conseguiam driblar as suas onipresenças.
Todas com os seus pares, casadas para sempre, monogâmicas até à morte, e depois
dela também. As senhoras frondosas, que chamávamos de baianas, eram generosas com
todas as espécies e bichos de diferentes tamanhos, dos grandes aos rastejantes,
até com as vacas do nosso vizinho Tenório, que dependuravam os pescoços nas
cercas para alcançar algum fruto, e muitas vezes só faltavam pedir por favor ou
pelo amor a Deus. A cada mugido aprendiam a ganhar mangas. Era uma verdadeira
luxúria. Quando alguma manga pequena, morta antes do tempo, caía, fincávamos
uma varinha entre ela e uma manga maior e, nesta, quatro varetas imitando as
pernas. O fruto proibido era uma maçã?! Só se Eva não conhecia a manga! Lambuzávamos
do rosto às bochechas, das mãos aos braços, e as ideias não eram mais as mesmas».
In
Vanessa da Mata, A Filha das Flores, 2013, Editora Schwarcz (Summertime,
MarciaMoraes), Companhia das Letras, 2013, ISBN 978-858-086-825-8.
Cortesia de ESchwarcz/CdasLetras/JDACT
JDACT, Vanessa da Mata, Literatura, Brasil,