Languedoq meados do sécalo XIII
«(…) Escapuliu-se do acampamento
com passos rápidos e dirigiu-se ao bosque, certo que a qualquer momento
apareceria o enviado de dona Maria. Estais atrasado, recriminou-o o homem que
saiu ao seu encontro como se se tratasse de um espectro. Era um cabreiro que
conhecia bem os caminhos da montanha. Não pude vir antes. Ou adormecestes,
replicou o homem, de mau humor. Não, não adormeci, só que não posso sair do
acampamento quando me apetece. Pois outros o fazem. Isso é uma surpresa! Surpreende-vos
que entre os soldados recrutados à força existam alguns que têm familiares ali
em cima? Julián calou-se. De modo que Fernando tinha razão. Havia quem entrasse
e saísse de Montségur como de sua própria casa. Onde é que a senhora me espera?
Segui-me até ao lugar. Caminharam perto de uma hora entre penhascos formados
por blocos calcários que terminavam na enorme rocha onde, desafiador ao olho
humano, se encontrava o castelo de Montségur. O cabreiro deteve-se junto de
umas árvores que se encarrapitavam por um dos penhascos. Mal recuperara o fôlego
quando se encontrou perante dona Maria. Julián, filho, quanto me alegra ver-te!
Minha senhora... Vem, senta-te a meu lado, não temos muito tempo e temos de o
aproveitar. Quero que me contes como estão as coisas ali em baixo. Os nossos
espiões dizem que Hugues des Arcis conta com dez mil homens. Espero que o conde
de Toulouse não se amedronte perante essa força e cumpra os seus compromissos
para com esta terra. Não se trata apenas de fé, mas sim de poder. Que dizeis,
senhora? Se Hugues des Arcis conquistar Montségur, acabou-se a liberdade na
nossa terra.
O rei quer estas terras porque,
sem elas, o seu reino não vale nada. Pensas que lhe interessam os cátaros? Não,
filho, não te iludas, aqui não se luta por Deus, mas sim pelo poder. Querem o
nosso país para a Coroa. Mas o papa quer erradicar a heresia! O papa sim, mas
ao rei de França tanto lhe faz. Senhora, dizeis cada coisa...! Bem, não te
cansarei com as minhas ideias, prefiro ouvir-te, ou melhor, que respondas às
minhas perguntas. Durante uma hora, dona Maria interrogou Julián. Não houve
pormenor acerca das forças de Hugues des Arcis sobre as quais não lhe colocasse
perguntas. E tu, Julián? Continuas a ser um crente? Que sei eu! Estou confuso,
senhora, já nem sei quem é Deus. Mas como é possível que digas isso? Enganei-me
contigo? Sempre te considerei inteligente, por isso quis que estudasses e te
tornasses dominicano... Contudo, a única coisa que quereis é que atraiçoe os
meus irmãos! O que quero é que sirvas o Deus verdadeiro, e não o demónio que
tens por Deus.
Julián persignou-se, espantado.
Dona Maria atormentava-o com as suas ideias heréticas e fazia-o duvidar. Ainda
recordava o dia em que o chamara para lhe dizer que encontrara o Deus
verdadeiro, e que a partir desse momento ele também o deveria servir. Explicou-lhe
que o mundo fora criado por uma divindade inferior, um demónio que encarcerara
os verdadeiros anjos, e que estes anjos eram as almas humanas que apenas se libertariam
com a morte. O corpo, disse-lhe, era uma prisão, o pior dos calabouços. Deus nada
tinha a ver com a terra oblivionis. Era Ele o artífice do espírito, não da realidade
material. Coexistiam duas criações, a má e a boa, a terrena e a espiritual. Os perfeitos,
acrescentou, ajudam-nos a encontrar o caminho para fugir da prisão e para que a
nossa alma se encontre no céu com essa parte do nosso espírito que voltará a
tornar-nos inteiros. Vi dom Fernando. Meu filho? Vosso filho». In
Julia Navarro, O Sangue dos Inocentes, 2007, Bertrand Editora, 2017, ISBN
978-972-253-182-5.
Cortesia de BertandE/JDACT
JDACT, Julia Navarro, Literatura, Cátaros,