A memória do esquecimento
«Pairava
no ar um certo receio de se virem a descobrir realidades penosas que fossem
contra as conveniências. Ela, sim. Sentia‑se desinibida à beira dele, a
conversar com ele. O visconde de Cairu? surpreendi‑a uma vez a perguntar‑lhe. É
verdade, respondia ele. E o pai?... Como é que o vovô soube?..., tornava ela. E
ele lá contava, com a voz um pouco sumida, à puridade, a estranha história... Flanela
azul às riscas... sentado na borda da cama..., o faiscar do anel no dedo
mindinho... Basta um pormenor para lhe avivar a imagem! Ela estendia‑lhe as
mãos de costas para cima. Ah! É um rapaz! Vou ter um bisnetinho! Mas a vinte e
seis de Dezembro nascia uma menina que ele já não pôde conhecer. Foi por isso
que não desci esse Natal ao Porto. Tampouco pela Páscoa me fiz à estrada. Tinha,
entretanto, tirado a carta e comprara um carro, motorizando‑me, fazendo preito
ao progresso. Só lá para os fins dos exames, em Julho, princípios desse outro
Agosto, de cinquenta e seis, cheguei do nordeste, nos olhos ainda a longa negra
fita de alcatrão ou paralelipípedos a enrolar‑se no galgar dos quilómetros, nos
rins o cansaço das intermináveis horas sentado ao volante do Volkswagen, que
vinha todo vomitado das voltinhas do Marão. Foi António o primeiro que falou.
Não porque sentisse necessidade de abordar o assunto. Aliás, posteriormente,
quando eu já me encontrava senhor dos acontecimentos, compreendi aquele como
que preconceituoso pudor da família em rodear o caso de um espesso mutismo. O
que o fez falar foram as circunstâncias... Aí estava ela! Não, não olhasse
ainda, para não dar nas vistas!... A mesa da terceira fila, atrás de mim...
Animava‑se
o café àquela hora, onze e meia da manhã, acabada a missa. Homens fumando,
chávena vazia à frente ou por instantes aflorada aos lábios, jornal aberto,
folheado, saboreado. Fatos cuidados, na ausência de nódoa ou enxovalho, no
vinco recente da calça. Barba escanhoada, camisa lavada. Catarro matinal,
tabacal. Aos pés de um deles, cabelo ralo todo lambido de brilhantina, para
trás, cara chupada, o macaco coçado, os tornozelos escanzelados a saírem das
peúgas lassas e do calçado cambado, faz o engraxador chiar e estalar a tira de
pano lustroso ao polir do sapato. Dá‑se um casal ao luxo da fofa loira torrada
com manteiga, em palitos, lambuzando os dedos. Os dela são papudos e brilham de
jóias. Por detrás do tinir das xícaras, pires e talheres, das vozes dos
empregados de mesa a comunicarem ao bufete os pedidos dos clientes (Sai um
galão! Três pingos e um copo de leite com canela!...), por entre a névoa que
paira no ar, misto de fumo e de vapor que embacia as vidraças, vêm de fora as
vibrações do tanger dos sinos. Coisa concreta, que quase se corta à faca, a
respiração e o perfume domingueiro. Que semelhança!, continuava António.
Enquanto o escutava, eu ia esperando a oportunidade de me voltar para trás.
Aparecia por ali muitas vezes, no Amial, dizia a voz dele. Morava talvez perto
ou então andava a espiá‑lo, a persegui‑lo. Isto pelo menos era o que insinuava
sua mulher, a Catalina, desconfiada... Cruzava com a desconhecida na rua, nos
lugares mais diversos e imprevisíveis da cidade, na Cordoaria, na Avenida dos
Aliados, na Lapa. Olá, sobrinho!, palavras dela no ar quando passava... As
feições um pouco menos amaciadas mas muito parecidas com as de Fernanda e com
um retrato antigo que ele vira da avó Ana... Teria aí uns vinte e dois anos.
Parece que aquilo fora caso acontecido aquando da morte de Raquel... Estranha
coincidência! O nascimento e a morte! Para Silva Lisboa tornara‑se motivo de
funda meditação. Albertina, porém, não podia admitir a junção dos dois factos,
das duas dores a lancear‑lhe a alma. Em cima da perda da filha, aquilo!... Olá,
sobrinho! Que queria tudo isso dizer?...» In Fernando Campos, Psiché, Difel, Lisboa,
1987, Dl nº 83973.
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