Agosto de 1099. Bagdade
«(…)
Em Bagdade, a decepção dos refugiados será tão grande quanto as suas
esperanças. Antes de encarregar seis altos dignitários da corte para que
efectuassem uma investigação sobre esses acontecimentos desagradáveis, o califa
Mustazhit-billah expressa a sua simpatia pela causa. E preciso dizer que não se
ouvira mais falar nesse comité de sabios? O saque a Jerusalém, ponto de partida
de uma hostilidade milenar entre o Islão e o Ocidente, não provoca, na hora,
nenhuma reacção. Foi preciso esperar cerca de meio século antes que o Oriente
árabe se mobilize perante o invasor, e que a chamada ao jihad lancada
pelo cádi de Damasco à tenda do califa seja celebrada como o primeiro acto
solene de resistência. No inicio da invasão, poucos árabes medem imediatamente,
como al-Harawi, a amplitude da ameaça vinda do Oeste. Alguns adaptam-se até
rápido demais à nova situação. A maioria só procura sobreviver, amargurada e
resignada. Alguns colocam-se como observadores mais ou menos lúcidos, tentando
compreender esses acontecimentos tão imprevistos quanto novos. O mais cativante
deles é o cronista de Damasco, Ibn al-Qalanissi, jovem letrado de uma família
de notáveis. Testemunho ocular, ele tem 23 anos, em 1096, quando os franj
chegam ao Oriente e se aplica em consignar por escrito os acontecimentos que
chegam ao seu conhecimento. A sua crónica narra fielmente, sem envolvimento
excessivo, a progressão dos invasores, tal como é vista na sua cidade. Para
ele, tudo começou nesses dias de angústia em que chegam a Damasco os primeiros
rumores...
A
Invasão. 1096-1100
Olhem para os franj! Vejam com que fúria
lutam por sua religião, enquanto nós, os muçulmanos, não demonstramos ardor
algum em travar a Guerra Santa. In Saladino
Naquele
ano, começaram a chegar informações sucessivas sobre a aparição de tropas de franj
vindas do mar de Mármara em grande multidão. As pessoas amedrontaram-se.
Essas noticias foram confirmadas pelo rei Kilij Arslan, cujo território era o
mais próximo desses franj. O rei Kilij Arslan de quem fala aqui Ibn
al-Qalanissi ainda não tem 17 anos quando os invasores chegam. Como primeiro
dirigente muçulmano a ser informado da sua chegada, esse jovem sultão turco de
olhos levemente puxados será o primeiro a infligir-lhes uma derrota e
posteriormente o primeiro a ser vencido pelos seus temíveis cavaleiros. Desde
Julho de 1096, Kilij Arslan sabe que uma imensa multidão de franj está a
caminho de Constantinopla. Imediatamente, ele teme o pior. É claro que ele não
tem ideia alguma dos objectivos reais perseguidos por essa gente, mas a vinda
deles ao Oriente bastava para que se atemorizasse. O sultanato que ele governa
abrange uma grande parte da Ásia Menor, um território que os turcos acabam
apenas de arrancar aos gregos. Na verdade, o pai de Kilij Arslan, Suleiman, foi
o primeiro a apossar-se dessa terra que se chamaria, muitos séculos mais tarde,
Turquia. Em Niceia, capital desse jovem Estado muçulmano, as igrejas bizantinas
continuam mais numerosas do que as mesquitas. Se a guarnição da cidade é
formada por cavaleiros turcos, a maioria da população é grega, e Kilij Arslan
não tem ilusões quanto aos verdadeiros sentimentos de seus súbditos, para os
quais ele será sempre um chefe de bando bárbaro. O único soberano que eles
reconhecem, aquele cujo nome é murmurado em todas as suas orações, e o basileu Aléxis
Comneno, imperador dos romanos. Na realidade, Aléxis seria antes o imperador
dos gregos, os quais se proclamam herdeiros do Imperio romano. Essa qualidade
lhes é, aliás, reconhecida pelos árabes, que, no século XI como no século XX,
designam os gregos pelo termo rum, romanos. O domínio conquistado
pelo pai de Kilij Arslan em detrimento do Imperio grego é chamado, inclusive,
de sultanato dos rum.
Na
época, Aléxis e uma das figuras mais prestigiosas do Oriente. Esse
quinquagenário de baixa estatura, olhos cintilantes de malícia, de barba bem
cuidada, modos elegantes, sempre paramentado de ouro e ricas roupagens azuis,
exerce um verdadeiro fascínio sobre Kilij Arslan. É ele quem reina sobre
Constantinopla, a fabulosa Bizâncio, situada a menos de três dias de caminhada
de Niceia. Uma proximidade que provoca no jovem sultão sentimentos mistos. Como
todos os guerreiros nómadas, ele sonha com conquista e pilhagem. Não lhe
desagrada sentir as riquezas legendárias de Bizâncio ao alcance da mão, mas ao
mesmo tempo sente-se ameaçado: sabe que Aléxis nunca perdeu as esperanças de
recuperar Niceia, não somente porque a cidade sempre foi grega, mas
principalmente porque a presença de guerreiros turcos, a tão curta distância de
Constantinopla, constitui um perigo permanente para a segurança do Imperio». In
Amin Maalouf, As Cruzadas vistas pelos Árabes, 1983, Colecção História
Narrativa, nº 38, Reimpressão, Edições 70, Ensaio, 2016,
ISBN-978-972-441-756-1.
Cortesia de Edições70/JDACT
Amin Maalouf, JDACT, Literatura, Árabes, Cruzadas,