A Invasão. 1096-1100
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Mesmo se o exército bizantino, dilacerado há anos por crises internas, fosse
capaz de lançar-se sozinho numa Guerra de Reconquista, ninguém ignora que
Alexis sempre pode apelar para auxiliares estrangeiros. Os bizantinos nunca
hesitaram em recorrer aos serviços dos cavaleiros vindos do Ocidente. Mercenários
com armaduras pesadas ou peregrinos a caminho da Palestina, são numerosos os franj
que visitam o Oriente. Em 1096 eles não eram estranhos aos muçulmanos.
Cerca de vinte anos antes, Kilij Arslan ainda não era nascido, mas os velhos
emires lhe contaram, um desses aventureiros de cabelos louros, um tal de
Roussel de Bailleul, que conseguira estabelecer um Estado autónomo na Asia
Menor, marchou inclusive sobre Constantinopla. Apavorados, os bizantinos não tiveram
outra escolha senão apelar para o pai de Kilij Arslan, que chegou a duvidar do
que ouvia quando um enviado especial do basileu veio suplicando-lhe que voasse
para socorrê-lo. Os cavaleiros turcos tinham-se então, de facto, dirigido para
Constantinopla e conseguido vencer Roussel. Por isso, Suleiman fora
generosamente recompensado em ouro, cavalos e terras.
Desde
então, os bizantinos desconfiam dos franj, mas os exércitos imperiais, constantemente
carentes de soldados experientes, veem-se obrigados a contratar mercenários. Não
unicamente franj, aliás; os guerreiros turcos são numerosos sob as
bandeiras do império cristão. E precisamente graças a compatriotas engajados no
exército bizantino que Kilij Arslan fica sabendo, em Julho de 1096, que
milhares de franj se aproximam
de Constantinopla. O quadro pintado pelos informantes deixa-o perplexo. Esses
ocidentais parecem-se muito pouco com os mercenários que se costuma ver. É
verdade que há, entre eles, algumas centenas de cavaleiros e um número
importante de infantes armados, mas também há milhares de mulheres, crianças,
velhos em andrajos: parece um povo desalojado de suas terras por um invasor.
Conta-se também que trazem todos, costuradas nas costas, faixas de tecido em forma
de cruz. O jovem sultão, encontrando dificuldades em avaliar o perigo, pede aos
seus agentes que dobrem a vigilância e que o deixem constantemente a par dos factos
e condutas desses novos invasores. Como medida de precaução, ele manda
verificar as fortificações de sua capital. As muralhas de Niceia, que tem mais
de um farsakh (seis mil metros) de extensão, são coroadas por 240
torres. A sueste da cidade, as águas calmas do lago Ascanios constituem uma
excelente protecção natural.
No
entanto, nos primeiros dias de Agosto, a ameaça torna-se mais evidente. Os franj
atravessam o Bósforo, escoltados por navios bizantinos e, mesmo sob um sol
opressivo, avançam ao longo da costa. Apesar de terem sido vistos saqueando a
caminho mais de uma igreja grega, pode-se ouvi-los bradar que vem exterminar os
muçulmanos. Seu chefe seria um eremita chamado Pierre. Os informantes avaliam
que sejam algumas dezenas de milhares, mas ninguém sabe dizer onde seus passos
os levam. Parece que o imperador Alexis resolveu instalá-los em Citivot, um
acampamento que ele acomodou anteriormente para outros mercenários, a menos de
um dia de caminhada de Niceia. O palácio do sultão fica em estado de alerta.
Enquanto os cavaleiros turcos preparam-se para alar seus cavalos a qualquer momento,
assiste-se a um vaivém continuo de espiões e batedores que relatam os mínimos
movimentos dos franj. Conta-se que cada manhã eles deixam o acampamento
em hordas de vários milhares para explorar a vizinhança, onde saqueiam algumas fazendas
e incendeiam outras, antes de voltar para Citivot, onde seus pares disputam os
frutos da razia. Não há nada disso que possa realmente atemorizar os soldados
do sultão. Nada também que possa preocupar seu senhor. Durante um mês, a rotina
se repete. Mas eis que um dia, por volta de meados de Setembro, os franj modificam bruscamente seus
hábitos. Não tendo provavelmente mais nada que obter de sua vizinhança, eles
tomaram, dizem, o rumo de Niceia, atravessando alguns vilarejos, todos cristãos,
e apossaram-se das safras que acabavam de ser colocadas em celeiros, nesse período
de colheita, massacrando sem piedade os camponeses que tentavam resistir. Crianças
de colo teriam sido queimadas vivas». In Amin Maalouf, As Cruzadas vistas pelos
Árabes, 1983, Colecção História Narrativa, nº 38, Reimpressão, Edições 70,
Ensaio, 2016, ISBN-978-972-441-756-1.
Cortesia de Edições70/JDACT
Amin Maalouf, JDACT, Literatura, Árabes,