Cortesia de BNP/JDACT
Inicórnio, ETC.. Introdução à
leitura de Uni-Bi-Tri-Tetra-Pentacórnio. 1951-1956
«Unicórnio nasceu
na «Brasileira do Chiado», onde muitas outras coisas nasceram ou se geraram,
desde meados dos anos 10. Nos seus anos 50, foi já em fim de época, nas
transformações de então da cidade, isto é, do Chiado. Em 1960, já nada lá podia
nascer. Fora o Orpheu, fora o
Nome de Guerra e os
quadros de 1926, fora a Variante de
41, de António Pedro, fora o Grupo Surrealista de 1949, já em terceira geração
da modernidade pátria que então terminava. Os novos quadros de 1971, com o
grande balcão de pastelaria no café encolhido, foi já um post-scriptum sem recuperação possível, e ainda menos
o Pessoa-à-Porta, em anos 70
ou 88, de outra cidade ou não cidade.
… Começo a escrever
estas regras na Brasileira,
por teimosia sem saudade (e acho que sou o único lisboeta que ainda lá, às
vezes, escreve), olhando, do outro lado da rua, apodrecer o Ramiro Leão, e
lembrando o cinquentenário da revista…
Na Brasileira, então, veio a ideia do Unicórnio, por
efeito do convívio com os amigos surrealistas, quando ainda, nas mesas do café,
se convivia, lendo o Diário de Lisboa,
engraxando os sapatos, pagando a bica com gorjeta de dois tostões para acertar
a conta, e aguardando horas do eléctrico para casa. Era em 1951. A exposição fora em 49, quase ao lado, outra, do
Azevedo-Lemos-Vespeira ia haver em 52, no Jalco,
mais abaixo, e, a seguir, foi a Galeria
de Março, logo acima. Havia ainda São
Luís e Chiado Terrasse,
deve dizer-se. Era época assim e ainda. Fui eu quem pôs a ideia em movimento e
porque a Censura, necessariamente consultada nesses tempos de um país
não-legal, não me deixara, à má cara de um capitão pequenino, reformado e de
óculos, publicar uma revista mais curial que seria edição da Confluência (e esse título
adoptaria), empresa suspeita por ser do António Pedro e minha, apesar do Dicionário
de Morais que conspicuamente editava, também na vizinhança do Chiado, e
pela diligência feita se viu ameaçada.
Seria então, e por minha
mais pessoal vontade, e chamando-lhe legalmente antologia de inéditos de autores
portugueses contemporâneos, que é, e edição do autor (da antologia,
conforme o código), sem, portanto, ser passível de censura. Periodicidade,
taxativa da definição de revista, não tinha: sairia quando saísse, e foram cinco números, entre Maio de
1951 e Dezembro de 1956. O título mudava, como era mister, para iludir a
continuidade, e nele se numerava a publicação, em prefixos latinos e gregos de
ocasião, por ideia macaca, de manguito às instituições…
Ficava barato, então,
publicar, em tipografia, uma revista de 500 exemplares, e outras havia, mais
sobretudo de poesia, que apareciam e desapareciam, ao sabor de grupos e
apetites, enquanto a Vértice e
a Brotéria, dificultada uma,
facilitada outra por suas ideologias, continuavam um curso já antigo que na Seara Nova sofria
intermitências de aparição. Nenhuma empresa se atrevia a tais aventuras, aliás
de público muito reduzido de previsão, nas livrarias do Chiado ou em uma ou
outra, mais atreita, pela província fora, passiva e triste, na felicidade do
Estado Novo.
A produção, muito
economizada, custava pouco mais de 5 contos, e, a 20 escudos por exemplar, com
descontos de livraria e aos amigos, ofertas, perdas e extravios, não era
recuperável; e só a ajudava uma tiragem especial, em papel e numeração, que um
bibliófilo do Porto, o Álvaro Bordalo,
se reservava para negociar. É claro que toda a colaboração era gratuita, nesses
anos 50 de dedicada inocência intelectual, sem lucros, nem ilusões
profissionais de sempre pouquíssimo mercado.
Os saldos das edições foram negativos mas não graves, pelo gosto obtido, e tudo acabou por se esgotar, até aos 250 contos que a colecção dos cinco números veio a alcançar em leilão, se bem que só meio século depois, ou quase. E até à consulta em microfilme, na Biblioteca Nacional, por preciosidade bibliográfica… Uni-Bi-Tri-Tetra-Pentacórnio situou-se na vida cultural portuguesa de uma maneira que deve agora interrogar-se, verificando que foi num momento charneira de gerações, à beira de anos 60 de grandes modificações sociais, logo com a guerra colonial, dinheiro em consumo mais fácil, e o envelhecimento paterno de Salazar.
Na última página da
publicação registou-se o nome de todos os 54 colaboradores que teve, em textos
ou ilustrações inéditas, com as respectivas especificações de géneros. Por essa
lista se verifica que eles se situam em várias gerações, desde a de Fernando Pessoa, até à de David Mourão-Ferreira,
como em várias opiniões, desde a de
António Sérgio, até à de António Quadros. Nascida no quadro de uma
reflexão ainda e finalmente modernista, com a mais recente criação surrealista
que interessava ao seu director, a revista desejou-se, porém, independente de opções
e ainda mais de agrupamentos. Não por eclectismo, mas por consciência cultural
historicamente situada que, para além de uma participação principal criativa,
impôs uma auscultação de opinião nacional sobre vários problemas do tempo
presente, que deviam recolher significativa resposta das esquerdas ali
preferidas, mas também de direitas existentes, como veremos.
Uma maior proximidade de convívio como de coincidência cultural, fez
com que os colaboradores mais assíduos fossem Jorge de Sena, José Blanc de
Portugal, Eduardo Lourenço e Fernando de Azevedo, em todos os números,
como, naturalmente, o autor; Delfim Santos participou em quatro,
como António
Pedro e Fernando Lemos; e Vespeira em três números, contando,
nos três últimos casos, com textos, desenhos e capas. O caso de
Fernando Pessoa foi de um importante texto inglês inédito trazido por
Tomás Kim (que o traduziu e anotou), escrito provavelmente em 1916 sobre Orpheu e o sensacionismo,
de que se fez separata do Tricórnio
em que apareceu». In Inicórnio, ETC., Mostra Documental,
2006-2007, apresentação de José Augusto França, Biblioteca Nacional, 2006, ISBN
978-972-565-413-2.
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