«Se captarmos as mudas palavras das plantas e os seus silenciosos
movimentos, estaremos a intensificar as nossas impressões através do equilíbrio
da forma no espaço. As plantas colhidas da Natureza são arranjadas de forma a
conterem uma nova beleza, quando colocadas num ambiente diferente. A ikebana
não é uma mera reprodução daquilo que a planta e a flor representavam na
Natureza. É uma criação artística com ramos, folhas e flores, marcada pelo
sentimento da ikebanista. Como
um poema ou uma pintura tecida de flores, estes arranjos florais expressam
tanto a beleza intrínseca das flores como a busca do belo nos nossos corações.
Para o japonês, a simetria é
uma forma muito estreita, sem espaço para as ideias, onde se insere, por
exemplo, um bouquet clássico barroco, em que a vista salta de flor em flor.
Mas numa forma com espaços livres e assimétricos, a atenção do artista é
chamada a seguir o movimento da dinâmica da vida e a beleza individual de cada
flor. É isso que a ikebana nos oferece. Uma flor é a Primavera; uma folha caída
encerra em si todo o Outono.
Por entre o pássaro e a borboleta
surge uma flor desmaiada:
céu de Outono
Bashô (1644-1694)
Matsuo Bashô, o maior
poeta japonês, reflecte aqui o jogo de inconstância que encontramos na pintura Sumi-e, a tinta da China, onde
plantas e flores são desenhadas com poucos e sugestivos traços. Cabe ao
observador completar a imagem, transformando e aprofundando o objecto da sua
contemplação. Bashô escreve
num dos seus diários:
- Estou só e escrevo para minha alegria.
Uma borboleta que esvoaça, ou uma brisa ligeira que sacode uma folha de
bambu, pode ser o elemento que cala a solidão e reclama a alegria. Amado por
inúmeras e sucessivas gerações, dentro e fora do seu país, Bashô é contemporâneo pela intemporalidade da sua obra.
Ah este caminho
que já ninguém percorre
a não ser o crepúsculo
Bashô
Este haiku é um poema tão breve que nos parece insignificante, mas
tem, de facto, uma dimensão cósmica. Há um caminho que ninguém pisa, nem mesmo
aquele que diz que ninguém por ele segue. É o eu que reconhece o caminho de ninguém. Sabe que essa é
a única via possível para nos explicar a fatalidade do destino de que nos fala
o haiku.
Ao descobrirmos o quão pequenos somos diante da Natureza, aprendemos a esvaziar
o ego para atingirmos a harmonia, aquilo a que os japoneses chamam coração
universal. É uma virtude indispensável para a compreensão das
manifestações artísticas. Será oportuno referir aqui que, até hoje, poucos
ocidentais tiveram a coragem de aprofundar o complexo mundo espiritual da
essência do budismo zen. Pois zen é algo que não pode ser definido
por palavras. Como disse um velho mestre:
- É apanhar a lua reflectida num límpido regato.
Os mais familiarizados com esta filosofia compreendem melhor o conceito
da Natureza na poesia japonesa: imaginemos, por exemplo, uma pintura
paisagística, onde a figura humana surge somente esboçada e perdida no vasto
cenário, tal como uma pedra ou uma árvore. Apenas algumas pinceladas,
descontraidamente aplicadas, bastam para sugerir um mundo rico de beleza e em
harmonia com os espaços livres.
Neste sentido, a arte japonesa é sem moldura, ou seja, um quadro não
é limitado por uma moldura nem física
nem espiritualmente. É possível descobrir uma montanha numa simples pedra,
ou vislumbrar o mar imenso numa pequena gota de água». In Lisa Flores, Cartas a Ninguém,
ilustração de Ingrid B. Martins, colecção Outras Obras, Nova Vega, 2004, ISBN
972-699-785-2.
Cortesia de Nova Vega/JDACT