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A década de 50 e as Córnio
«Após a experiência
surrealista dos finais da década de 1940 e da publicação do romance Natureza Morta (1949),
integrado estilisticamente na linha de Mau
Tempo no Canal (1944), de Vitorino
Nemésio, ambos tentativas de superação simultânea dos postulados estéticos
do presencismo e do neo-realismo, a década de 50 constitui-se como uma das mais
importantes da vida de José Augusto
França. Nela, o autor, perfazendo os trinta anos, ensaia incessantemente
múltiplos e inovadores caminhos existenciais e artísticos, que restringirá, no
final da década, partindo para Paris e assumindo-se definitivamente, a partir
dos anos 60, como crítico e historiador de arte. Assim, a década de 50
constitui, para José Augusto França,
um intrincado e vibrante cadinho de experiências individuais, sempre dominadas
pelo plano estético: algumas ensaiadas e fracassadas, como a de dramaturgo (Azazel, 1956) e a de galerista de
arte (Galeria de Março, em colaboração com Fernando Lemos);
outras, bem sucedidas mas rapidamente abandonadas, como a de editor de poesia (co-editor
de Cadernos de Poesia, II e
III séries, 1951-1953; colaborador de Árvore
[1951] e do primeiro número de Cassiopeia,
1955); outras, ainda, experimentadas mas submergidas por novas opções (como a
de crítico de cinema, Dez Anos de
Cinema, 1960, e a de contista, Despedida
Breve, 1958); e outras irreversivelmente decisivas, estabelecedoras do
seu sentido cultural de vida, como a de crítico de arte, Amadeo de Sousa-Cardoso, 1954; Situação da Pintura Ocidental, 1959; Da Pintura Portuguesa, 1960, recolha de inúmeros artigos
jornalísticos publicados ao longo da década de 50, mas todas, absolutamente
todas, dominadas pelo cunho da inovação estética e do vanguardismo cultural.
Ao longo da década de
50, o estatuto cultural do jovem José Augusto
França, desdobrado nas suas múltiplas actividades e facetas, afirma-o como
vocacionado para a renovação estética do país, segundo uma absoluta pulsão de
vanguarda. Se se ler a bibliografia de José Augusto França dos anos 60 a 90 e a
compararmos com a sua obra nas décadas de 40 e 50, constata-se a existência de
uma fractura assinalada na passagem entre as décadas de 50 e 60, denunciando a
existência de dois José Augusto França:
- o jovem, experimentador, vanguardista, ensaiador de novas atitudes estéticas, tacteando a abertura a diferentes horizontes culturais, o surrealismo, a pintura modernista, o cinema europeu, o teatro existencialista, a nova poesia portuguesa, a nova ficção portuguesa, a ruptura com o mercado de arte português, o ensaio sem dogmas ideológicos…, em que se distingue até à sua partida para Paris em 1959 (35 anos),
- o maturo, cuja actividade teórica e historiográfica não se evidencia menos ousada e ruptural, inauguradora de um novo período na historiografia da arte em Portugal, mas, agora, restringida à história e sociologia da arte e da cultura, em que se especializara e cuja vastíssima obra lhe preencherá a vida até aos finais da década de 90, quando, de certo modo, jubilado da universidade, retorna aos experimentalismos da década de 50, ensaiando crítica cinematográfica, ficção, crítica urbanística…, tudo envolvido no que teoriza ser um facto sócio-cultural.
As Córnio pertencem por inteiro, caso não condensem em
absoluto, o espírito do jovem França.
Porém, se o seu estatuto apenas se restringisse a exemplo de vida pessoal, não
justificariam o relevo cultural que verdadeiramente possuem. Como o seu
Almada
da década de 20 ou o seu António Pedro da de 30, França evidencia-se como a mão ousada que
personifica o espírito cultural da década de 50, que, em síntese, tanto se
sente nacionalisticamente preso ao terrunho português, quanto é incapaz de
esteticamente desviar os olhos da nova Europa pós-II Guerra Mundial.
O que diferencia as Córnio das restantes revistas da década de 50? O que as aproxima? Em primeiro lugar, aproxima-as o espírito cultural presente nesta década, em síntese, a tentativa de superação, por via do grito emblemático a poesia é toda uma, da herança estética presencista, neo-realista e surrealista, espírito bem espelhado já na Revista de Portugal (1938-1940), de Vitorino Nemésio, que frutificará, ao longo da década, em Árvore (1951), nas duas últimas séries de Cadernos de Poesia (1951; 1952/53), em Távola Redonda (1950), em Cassiopeia (1955), em Cadernos do Meio-Dia (1958), realizando-se, já nos princípios da década de 60, em Europa (Urbano Tavares Rodrigues) e Almanaque (José Cardoso Pires), anunciando a mentalidade da geração seguinte, expressa em O Tempo e o Modo (1963). Em segundo lugar, aproxima-as tanto a ausência de dogma estético fundado no indivíduo (presencismo), na sociedade (neo-realismo) ou no onírico (surrealismo) quanto a abertura à infinidade de possibilidades humanas, despindo o homem e a arte de uma exclusiva e unicitária fundamentação, e estatuindo a liberdade como principal motor e finalidade da sua realização: a supervalorização da liberdade, eis o elemento comum a todas as revistas citadas». In Inicórnio, ETC., Mostra Documental, 2006-2007, apresentação de José Augusto França, Biblioteca Nacional, 2006, A década de 50 e as Córnio, Miguel Real, ISBN 978-972-565-413-2.
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