A
missanga todas a vêem. Ninguém nota o fio que, em colar vistoso, vai compondo
as missangas. Também assim é a voz do poeta: um fio de silêncio costurando o
tempo.
O
homem cadente
«Quando
me vieram chamar nem acreditei: - É Zuzézinho! Está caindo do prédio.
E
as gentes, em volta, se depressavam paru o sucedido. Me juntei às correrias, a
pergunta zaranzeando: o homem estava caindo? Aquele gerúndio era um desmando
nas graves leis da gravidade: quem cai, já caiu.
Enquanto
corria, meu coração se constringia. Antevia meu velho amigo estatelado na
calçada. Que sucedera para se suicidar, desabismado? Que tropeção derrubara a
sua vida? Podia ser tudo: os tempos de hoje são lixívia, descolorindo os
encantos. Me aproximava do prédio e já me arranhava na multidão. Coisa de
inacreditar: olhavam todos para cima. Quando fitei os céus, ainda mais me
perturbei: lá estava, pairando como águia real, o Zuzé Neto. O próprio José
Antunes Marques Neto, em artes de aero-anjo. Estava caindo? Se sim, vinha mais
lento que o planar do planeta pelos céus.
Atirara-se
quando? Já na noite anterior, mas o povo só notara no sequente dia. Amontara-se
logo a multidão e, num fósforo, se fabricaram explicações, epistemologias. Que
aquilo provinha de ele ter existência limpa: lhe dava a requerida leveza. Fosse
um político e, com o peso da consciência, desfechava logo de focinho. Outros se
opunham: naquele estado de pelicano, o cidadão fugia era de suas dívidas.
Ninguém cobra no ar. Houve até versão dedicadamente cristã. Um mirone,
longilongo, vestido como se coubesse numa só manga, bradejou apontando o
firmamento: - Aquilo, meus senhores, é o novo Cristo.
E
o magricela prosseguiu, em berros: Cristo nos escancarou as portas de quê? Do
céu, caros confrades. Do céu. Pois agora, o supramencionado Zuzé nos mostrava o
caminho celestial . E fazia-o sem ter que morrer, o que era uma reconhecida
vantagem. - Aquilo, meus senhores, é o Cristo descrucificado. Mandaram
que calasse. Outros, mais práticos, se ocupavam com o que se iria seguir. E
vaticinavam um fim, enfim:
-
O tipo vai demorar assim, uma infinidade de dias. - Vai é morrer de sede e
fome.
Se
nem na terra se comia nas vigentes condições, quanto menos nas nuvens. A mim me
abalava era a urgência de meter mãos na obra. Alguém devia fazer a certeira
coisa. E gritei, entre os zunzuns: - Chamaram os bombeiros? Sim, mas
estavam em greve. Estivessem no activo faria pouca diferença: eles não tinham
carros, nem escada, nem vontade. Eram, na verdade, bombeiros bastante
involuntários.
Fazia-se
tarde, as pessoas reentravam. Ficaram uns quantos, escassos e silenciosos.
Voltei a olhar o céu e foquei melhor o meu amigo Zuzé. Seu rosto exalava tais
serenidades que parecia dormir. As pernas, estendidas como flamingo , cruzavam
nos tornozelos, os braços almofadando a cabeça. Parecia apanhar banhos de céu.
Que coisa passaria em sua mente?
Foi
quando notei, a meu lado, a moça chorando. Era tão miúda que confundi ser sua
filha. Cheguei mesmo a perguntar à jovem. Que filha? Era, sim, sua paixão
escondida. Aquilo se convertia em assunto de novela, drama sem faca nem
alguidar. Nem valia querer saber. A moça não tinha outra explicação senão a
lágrima.
Aos
poucos, se retiraram todos. Fiquei eu e a moça. Ela se encostou em meu ombro,
parecia adormecida. Não fosse o respingar de sua voz, ladainhando. Continuava
chorando? Não. Rezava. Ela rezava para que chovesse. Ao menos, ele beberia
gotinhas do céu e não secaria como o tubarão em salmoura. Que a moça tivesse
invocado os certos espíritos ou fosse capricho das forças naturais: a verdade é
que, no instante, começou a chover. E choveu nos dois seguintes dias.
Onde
nada se passa, tudo pode acontecer. E a multidão se foi rendendo, em turnos.
Guarda-chuvas encheram o espaço e os receios começaram a ganhar voz:
-
A chover assim, o tipo vai ensopar, ganhar peso e desandar por aí abaixo.
Os
deuses tivessem ouvidos. Parou de chover. E os dias seguintes prosseguiam como
se o próprio ar tivesse parado. O voo de Zuzá já era um atractivo da cidade.
Negócios vários se instalaram. Turistas adquiriam bilhetes, cicerones do
fantástico explicavam versões inéditas de como Zuzé nascera com penas no sovaco
e descendia de uma família de secretos voadores. O fulano era o congénito
destrapezista. O próprio tio alugava um megafone para que enviassem mensagens e
votos de boas bênçãos. Até eu paguei para falar com o meu velho amigo. Quando, porém,
me vi com o megafone não soube o que dizer. E devolvi o instrumento.
De
facto, vieram as autoridades devidas, por via do chefe máximo das forças
policiais se fizeram ouvir por devido altifalante:
-
Desça em nome da lei!
O
político por trás lhe segredava as deixas. As massas, os eleitores , ansiavam
por um desempenho. - Continue a dar ordens. Continue, mais firme!
- Incitava o político. O porta-voz obedecia, estridenteando:
-
O seu comportamento, caro concidadão, é verdadeiramente antidemocrático.
Contra
os direitos humanos, bichanava o político. Contra a imagem de estabilidade de
que a nação carecia, ainda acrescentou o falante. Os doadores internacionais se
espantaram com o desacontecimento. Mas Zuzé nem água ia nem água vinha. Sorria,
em trejeito malandro. E, agora, pronto: ponho ponto. Nem me alongo para não
esticar engano. Pois tudo o que vos contei, o voo de Zuzé e a multidão cá em
baixo, tudo isso de um sonho se tratou. Suspirados fiquemos, de alívio. A
realidade é mais rasteira, feita de peso e de pés na terra.
Mas
eu, no dia seguinte, não estava certo do meu sossego. E fui ao local para me
certificar de quanto eu devaneara. Encontrei tudo arrumado no regime da cidade.
Lá estava o céu, vazio de humanos voadores. Só o competente azul, a evasiva
nuvem. E os pássaros mais sua avegação. E mais a praça, bem terrestre, desumanamente
humana. Tudo sem notícia, tudo pouco sonhável. De repente, vi a moça. A mesma
do sonho. Ela, sem tirar nem opor. E, para mais, continuava olhando os céus. Me
cheguei e ela, sem deixar de olhar para o firmamento, sussurrou: - Já não o
vejo. E o senhor? - Eu, o quê? - O senhor consegue ver Zuzé?
Menti
que sim. Afinal, mais valia um pássaro. Mesmo de fingir. Deixássemos Zuzé voar,
ele já não tinha onde tombar. Neste mundo, não há pouso para aves dessas. Onde
ele anda, é outro céu». In Mia Couto, O Fio das Missangas, Editorial
Caminho, Frente e Verso, 2004.
Cortesia
de Caminho/JDACT