sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Sonetos. Camões. Ciclo Idílico. 1540-1547. «Quando se vir com a água o fogo arder e misturar co dia a noite escura, e a Terra se vir naquela altura em que se vêm os Céus prevalecer»


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 Onde mereci eu tal pensamento
Onde mereci eu tal pensamento,
nunca de ser humano merecido?
Onde mereci eu ficar vencido
de quem tanto me honrou co' o vencimento?

Em glória se converte o meu tormento,
quando vendo-me estou tão bem perdido;
pois não foi tanto mal ser atrevido,
como foi glória o mesmo atrevimento.

Vivo, Senhora, só de contemplar-vos;
e, pois esta alma tenho tão rendida,
em lágrimas desfeito acabarei.

Porque não me farão deixar da amar-vos
receios de perder por vós a vida,
que por vós vezes mil a perderei.

Quando se vir com a água o fogo arder
Quando se vir com a água o fogo arder
e misturar co dia a noite escura,
e a Terra se vir naquela altura
em que se vêm os Céus prevalecer;

o Amor por Razão mandado ser,
e a todos ser igual nossa ventura,
com tal mudança, vossa formosura
então a poderei deixar de ver.

Porém, não sendo vista esta mudança
no mundo (como claro está não ver-se),
não se espere de mim deixar de ver-vos.

Que basta estar em vós minha esperança,
o ganho de minh’alma e o perder-se,
para não deixar nunca de querer-vos.

Luís Vaz de Camões, in 'Sonetos

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