Nota: De acordo com o
original
«A esse tempo, no céo alto e lavado a estrella d'alva fenecera por fim,
e o horisonte começava de carminar-se ao de leve. Por todo o céo em cupula, a luz fresca e viva da manhã vibrava
harmonias extranhas que iam despertar tudo, a côr da paizagem e a musica dos
ninhos, cantigas de perdizes e rumor de gente por moinhos e atalhos. Manhã de
verão, serena, tranquilla, dulcissima. Ia pelo ar um movimento extraordinario
de azas-passarada alegre que sahia agora dos ninhos e voava a matar a sede á
borda das ribeiras, andorinhas que deixavam as suas casinholas em reconcavos de
rocha e tomavam para hortejos convisinhos onde a vegetação era mais rica de
seiva e mais facil a presa dos insectos, perdizes gralhadoras que iam de monte
em monte, tordos, poupas, melros. Nos vinhedos das encostas, por entre os
renques verdejantes, gente em mangas de camisa ia fazendo as vindimas. Pelos
caminhos, em torcicóllos, viam-se os que desciam aos moinhos, tangendo machos
carregados de taleigos, e berrando-lhes cada –chó -! que se ouvia na outra ladeira. Já nas povoações proximas
sinos chamavam para a missa d'alva ou tocavam a Ave-Marias. Nas quintas e casas
fumegavam os tectos, dizendo horas de almoço. De modo que o sol quando rompeu,
solemne e triumphante no céo immaculado, encontrou muita vida pelos campos,
toda a natureza acordada para a labuta interminavel do dia. N’uma clareira
elevada, dominando o rio e um trecho de paizagem para sul, tinham-se sentado os
dois pastores e continuavam conversa.
Ao pastor parecia-lhe
agora mais bonita a pequena amiga, com a sua côr trigueira levemente pallida
desde que tivera as maleitas. Não se lembrava com que santa que elle tinha
visto se lhe parecia agora a Rosaria... - Mas o cabello assim cortado... - disse
com magua, mirando-lhe a cabeça nua, e passando a mão pela d'elle, - é que te
não fica bem!
«Melhor fôra que lhe tivessem
deixado as tranças. Negras, de mais a mais, que era como elle gostava...»
- Promessa da mãe se eu melhorasse - explicou
a Rosaria - Lembranças... A gente quando está afflicta... - ...Quando está
afflicta... - repetiu como um echo o pequeno. E depois, amuado: - Se promette
os olhos... A rapariga fitou-o, espantada. - ...é porque t’os tirava! - concluiu
convicto.
Houve um momento de silencio,
em que o Gonçalo se pôz a escavar o chão com uma pedra, e a Rosaria a torcer um
fio saliente do seu vestido grosseiro. Ouviam-se as ovelhas chocalhando nas
pastagens, ia a passar na rodeira, longe, um carro que chiava, com uvas para
algum lagar.
- Não fallas, Rosaria? - perguntou o pastor
sem levantar os olhos para ella. - Tambem tu... - começou com medo a pequena, -
logo te zangas! Olhem a lembrança dos olhos! Se a mãe fazia isso, credo! - E
depois animando-se: - Já foste á Senhora dos Remedios? O Gonçalo fez signal que
não tinha ido.
- Pois foi lá que deixámos as tranças, eu mais
a mãe. N'um prego ao lado do altar, um lacinho verde nas pontas. Ficou lindo. O
pastor teve um movimento de enfado, não lhe agradava a conversa. E para acabar
com ella: - Que emfim como melhoraste... - fez que concordava, pondo o bilro a girar.
- Olha como dança... - E depois, mais pensativo, batendo com o bilro nos
dentes: - Que ás vezes as promessas pouco fazem... - E interrompendo: - Sabes
quem fez este bilro? - Foste tu, aposto.
Bateu no peito e fez com a cabeça que sim, mostrando-lh'o orgulhoso - que visse os - torneados -. Depois continuou: - Vae uma pessoa andando e os santos não se importam. Ora, os santos! - Olha a minha Joaquina, tu não conheceste. A gente bem resou e bem promessas fez, mas ella foi-se.
E pondo-se de joelhos,
começou a procurar pelo rebanho. - Aquella ovelha, a branca, não vês? A que se
vae agora deitar... Pois era p’ra Nossa Senhora, repara que é a melhor. - E
deitando-se para traz: - Lá anda ella a pastar! - concluiu desalentado. - Mas
tinha de ser, - volveu-lhe triste a Rosaria, - que as promessas sempre fazem,
lá isso...
E convicta, a pequena
contou casos acontecidos para convencer o Gonçalo de que sempre valiam as
promessas. No emtanto, deitado de costas, com a jaqueta a fazer de travesseiro,
as pernas em angulo tocando-se com os joelhos, o Gonçalo soprava pela palha o
bugalhinho que constantemente ia subindo e descendo, acompanhado pelo olhar
bondoso do cão que ali perto se deixara estar sentado. E contando, contando
casos, a Rosaria ia entretendo o pastor. Mas quando ella fazia pausa, logo o
rapaz acudia, firme na sua objecção: - Ora! Mas a nossa Joaquina morreu-se!
Coitadinha da Joaquina!» In Trindade Coelho, Os Meus Amores, Contos e
Baladas, Projecto Gutenberg, ISSO 88589-1, 2006, produção de Carla Ramos e
Ricardo Diogo e edição de Rita Farinha, Os Meus Amores, 2ª edição, Lisboa,
Livraria de António Pereira, 1894.
Cortesia de P.
Gutenberg/JDACT