A cultura da urgência
«[…] essa gradual perda de experiência na sociedade moderna
que resultaria da incapacidade do sujeito para transformar em experiência
genuína a pluralidade das impressões; o seu tempo é o tempo de uma sucessão de
sensações não acumulativas, descontínuas e a modo de choque. Deixando-nos
absorver pela urgência do presente, limitamos a nossa energia temporal ao mais
imediato. Quanto mais mergulhamos na urgência presente, menos valor atribuímos
à ideia de projecto e à lógica do longo prazo. Tudo gira em redor de um
presente vicinal, autárcico, auto-referencial e inquieto. Deu-se uma espécie de
compressão do tempo ou abreviação do presente, que se faz sentir em diversos
níveis e em registos diferentes. A omnipresença do tempo curto verifica-se na
forma de zapping, fast, flash, clips,
spots,
surfing,
mas também nas terapias e no entretenimento ou nos serviços de urgência nas 24
horas do dia. Esta contracção do tempo impõe os seus próprios modos de gestão.
Valores como a flexibilidade ou a adaptação, que são, evidentemente, muito
importantes, transformam-se em princípios absolutos que determinam as grandes
decisões. Instaurou-se uma ditadura do tempo real nas organizações, na política
e na sociedade em geral. É o império da eficácia, do instante, do curto prazo,
da satisfação, da urgência, da velocidade, da imediatez, da ligeireza e da
flexibilidade.
As condições técnicas de aceleração da velocidade social
atingem a temporalidade da política de três maneiras:
- reduzem-lhe a capacidade de captar e interpretar a informação,
- transbordam dos espaços estatais como âmbitos exclusivos de governo,
- transformam a acção pública em reacção pública.
O actor público não age, reage. Há incerteza; como, porém,
se deve agir a todo o custo, os agentes políticos recorrem a acções de curto
alcance destinadas a enfrentar constrições imediatas como os protestos ou as
eleições. Sobrevaloriza-se a acção, a resposta imediata, como antídoto contra a
incerteza. Os actores políticos estão continuamente a apagar fogos e não
conseguem formular objectivos de longo prazo. Decidem sistematicamente a favor
do curto prazo e contra o longo, renunciando à ideia de que lhes cabe,
precisamente, arbitrar entre ambas as coisas.
A urgência, esse grau zero da distância temporal, perdeu o
estatuto de temporalidade excepcional e constitui-se em temporalidade normal.
Multiplicam-se as falsas urgências e aumenta a pressão para actuar
imediatamente. A reactividade instantânea pesa sobre as instituições, as
organizações e o modo de trabalhar. No universo competitivo, a imediatez das
respostas constitui uma regra absoluta de sobrevivência. A urgência deixou de
ser excepcional e impõe-se como modalidade temporal da acção em geral. Todos
sabemos, contudo, que a absolutização da urgência arruína a própria ideia de
urgência. Os sinais de alarme só são eficazes quando excepcionais, quando não se
generalizam.
Para compreender como se arruína o urgente, basta ter compreendido
a lógica que explica o frequente colapso dos serviços de urgência. O conceito
de urgência não é objectivo: é uma inquietação perante o futuro incerto; diz-se
que muitas das pessoas que afluem aos serviços de urgência dos hospitais e os sobrecarregam
podiam perfeitamente ser tratadas nos serviços normais. Um serviço de urgência
é por princípio uma coisa excepcional que só tem sentido quando não é possível
outra solução. A generalização do recurso a procedimentos de urgência revela a ineficácia
ou e falta de confiança nos procedimentos e instituições normais. O urgente só
tem sentido quando existe o que não é urgente». In Daniel
Innerarity, O Futuro e os seus Inimigos, Teorema, 2011, ISBN 978-972-695-960-1.
Cortesia de Teorema/JDACT