«Os corpos incompletos dos jovens procuram a cumplicidade de uma nudez
condescendente, e nos pequenos cafés, onde Baltasar ia tantas vezes na
companhia do velho poeta da cidade, os rapazolas começam a jogar aos dados, à
luz das candeias de petróleo; mas, sem tardança, o vento do deserto, prosaico e
áspero, constrange-os a largar as pedras, e ficam inertes, a observar os
desconhecidos. A respiração é dolorosa e em cada baforada estival reconhecem o
sabor ressequido da cal viva...
Tive de vir para aqui para reconstruir integralmente esta cidade na minha
memória, esta melancólica província que o velho considerava cheia das ruínas negras da sua vida. O estrondear
dos eléctricos vibrando nas suas artérias metálicas, penetrando no meidan
cor de ferrugem de Mazarita. Ouro, fósforo, magnésio, papel. Aqui nos encontrámos
muitas vezes . Havia um pequeno bar onde ela gostava de vir, no Verão, tomar
sorvete e comer talhadas de melancia. Chegava sempre atrasada, regressando,
provavelmente, de qualquer encontro num gabinete de persianas cerradas, mas eu
fazia por não adivinhar essas coisas quando a sua boca, maravilhosamente fresca
e jovem, procurava saciar nos meus lábios uma infinita sede estival. Talvez na sua
memória ainda agonizasse a imagem do homem que acabava de deixar, e no seu
corpo arrefecesse ainda o calor dos beijos recebidos.
Mas isso não tinha a menor importância; só contava, agora, a suave curva
do seu braço que envolvia o meu, e eu gozava uma felicidade completa porque
nela não existiam segredos. Era bom estarmos assim, perturbados e ligeiramente
embaraçados, um pouco oprimidos pelo conhecimento partilhado do nosso desejo
recíproco. As mensagens não se detinham na consciência, atravessavam
espontaneamente os lábios entreabertos, os olhos, os sorvetes e a lojeca de
toldo vivamente colorido. Éramos uma parte da cidade, e ali estávamos, com os
dedos entrecruzados, respirando a tarde perfumada de aromas de cânfora.
Esta noite, estive a reler os meus apontamentos. Alguns serviram para
acender o fogão, outros foram destruídos pela criança. Mas é uma espécie de
censura que me apraz, porque tem a indiferença das forças naturais para com o
mundo da Arte, uma indiferença que eu começo a partilhar. No final das contas,
que interesse tem para Melissa uma bonita metáfora, quando se encontra agora
profundamente enterrada, como uma múmia, na areia tépida e sombria do negro
estuário?
Mas estes papéis que eu guardo com cuidado são os três cadernos do diário
de Justine
e as páginas que registam a loucura de Nessim. Foi o próprio Nessim
quem me entregou todos esses documentos, quando parti, dizendo-me: - Guarde e
leia. Há muito de nós todos nessas páginas. Ajudá-lo-ão, como sucedeu comigo, a
suportar a perda de Justine, sem ser obrigado a esquecê-la. Foi no Palácio de
Verão, depois da morte de Melissa, quando ele ainda cria no retorno de Justine.
Penso muitas vezes, e sempre com um certo terror, no amor de Nessim por Justine.
Que poderia existir de mais compreensivo, de mais bem fundado? Na sua dor havia
aquela espécie de êxtase que geralmente se considera um atributo dos santos mas
que se encontra, também, nos verdadeiros amantes. Um pouco de espírito poderia
mitigar-lhe o sofrimento. Mas é fácil criticar. Demasiado o sei.
Na grande tranquilidade das noites de Inverno, o mar é um enorme relógio.
A sua perturbadora agitação, que se prolonga no espírito, é a fuga sobre que
este escrito se compõe. Cadências vazias das ondas que lambem as suas próprias
feridas, indolentes nas extensões planas do delta, ferventes nas praias
desertas, para sempre vazias sob o voo melancólico das gaivotas: garatujas brancas
sobre fundo cinza, espumadas pelas nuvens... Se, por equívoco, uma vela se
aproxima destas paragens, logo se desvanece, antes de cair sob a sombra da
terra. Destroços arrancados do frontão das ilhas, a última camada, corroídos pelas
intempéries, abandonados no ventre azul do mar... Desaparecidos!» In
Lawrence Durrell, Justine (Quarteto de Alexandria), Editora Ulisseia, Lisboa,
2007, ISBN 978-972-568-496-2.
Cortesia de Ulisseia/JDACT