sábado, 12 de janeiro de 2013

Justine. Quarteto de Alexandria. Lawrence Durrell. «As mensagens não se detinham na consciência, atravessavam espontaneamente os lábios entreabertos, os olhos, os sorvetes e a lojeca de toldo vivamente colorido. Éramos uma parte da cidade…»

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«Os corpos incompletos dos jovens procuram a cumplicidade de uma nudez condescendente, e nos pequenos cafés, onde Baltasar ia tantas vezes na companhia do velho poeta da cidade, os rapazolas começam a jogar aos dados, à luz das candeias de petróleo; mas, sem tardança, o vento do deserto, prosaico e áspero, constrange-os a largar as pedras, e ficam inertes, a observar os desconhecidos. A respiração é dolorosa e em cada baforada estival reconhecem o sabor ressequido da cal viva...
Tive de vir para aqui para reconstruir integralmente esta cidade na minha memória, esta melancólica província que o velho considerava cheia das ruínas negras da sua vida. O estrondear dos eléctricos vibrando nas suas artérias metálicas, penetrando no meidan cor de ferrugem de Mazarita. Ouro, fósforo, magnésio, papel. Aqui nos encontrámos muitas vezes . Havia um pequeno bar onde ela gostava de vir, no Verão, tomar sorvete e comer talhadas de melancia. Chegava sempre atrasada, regressando, provavelmente, de qualquer encontro num gabinete de persianas cerradas, mas eu fazia por não adivinhar essas coisas quando a sua boca, maravilhosamente fresca e jovem, procurava saciar nos meus lábios uma infinita sede estival. Talvez na sua memória ainda agonizasse a imagem do homem que acabava de deixar, e no seu corpo arrefecesse ainda o calor dos beijos recebidos.
Mas isso não tinha a menor importância; só contava, agora, a suave curva do seu braço que envolvia o meu, e eu gozava uma felicidade completa porque nela não existiam segredos. Era bom estarmos assim, perturbados e ligeiramente embaraçados, um pouco oprimidos pelo conhecimento partilhado do nosso desejo recíproco. As mensagens não se detinham na consciência, atravessavam espontaneamente os lábios entreabertos, os olhos, os sorvetes e a lojeca de toldo vivamente colorido. Éramos uma parte da cidade, e ali estávamos, com os dedos entrecruzados, respirando a tarde perfumada de aromas de cânfora.

Esta noite, estive a reler os meus apontamentos. Alguns serviram para acender o fogão, outros foram destruídos pela criança. Mas é uma espécie de censura que me apraz, porque tem a indiferença das forças naturais para com o mundo da Arte, uma indiferença que eu começo a partilhar. No final das contas, que interesse tem para Melissa uma bonita metáfora, quando se encontra agora profundamente enterrada, como uma múmia, na areia tépida e sombria do negro estuário?
Mas estes papéis que eu guardo com cuidado são os três cadernos do diário de Justine e as páginas que registam a loucura de Nessim. Foi o próprio Nessim quem me entregou todos esses documentos, quando parti, dizendo-me: - Guarde e leia. Há muito de nós todos nessas páginas. Ajudá-lo-ão, como sucedeu comigo, a suportar a perda de Justine, sem ser obrigado a esquecê-la. Foi no Palácio de Verão, depois da morte de Melissa, quando ele ainda cria no retorno de Justine. Penso muitas vezes, e sempre com um certo terror, no amor de Nessim por Justine. Que poderia existir de mais compreensivo, de mais bem fundado? Na sua dor havia aquela espécie de êxtase que geralmente se considera um atributo dos santos mas que se encontra, também, nos verdadeiros amantes. Um pouco de espírito poderia mitigar-lhe o sofrimento. Mas é fácil criticar. Demasiado o sei.

Na grande tranquilidade das noites de Inverno, o mar é um enorme relógio. A sua perturbadora agitação, que se prolonga no espírito, é a fuga sobre que este escrito se compõe. Cadências vazias das ondas que lambem as suas próprias feridas, indolentes nas extensões planas do delta, ferventes nas praias desertas, para sempre vazias sob o voo melancólico das gaivotas: garatujas brancas sobre fundo cinza, espumadas pelas nuvens... Se, por equívoco, uma vela se aproxima destas paragens, logo se desvanece, antes de cair sob a sombra da terra. Destroços arrancados do frontão das ilhas, a última camada, corroídos pelas intempéries, abandonados no ventre azul do mar... Desaparecidos!» In Lawrence Durrell, Justine (Quarteto de Alexandria), Editora Ulisseia, Lisboa, 2007, ISBN 978-972-568-496-2.

Cortesia de Ulisseia/JDACT