quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Claustro do Silêncio. Prémio Vergílio Ferreira. Luís Rosa. «No mais, são iguais em vícios, grandeza, abjecção ou sublimidade. Que de tudo há em todos. Cada um apanha o rosto por que opta, para a construção do papel dos seus dias. O rosto, esse livro aberto! Nascemos apenas com risos e choros»

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O Segredo
«Eu não tenho idade, amigo. Neste ano de infortúnio de 1834, sinto que vou acabar os dias de uma idade que o mundo conta, mas que, na realidade, se repete em círculo. Talvez mudem os cenários da comédia que a vida representa. Mas as cenas não são novas e as pedras deste Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça já assistiram, com a mesma passividade, a outras iguais. As personagens também são as mesmas. Reencarnam. Transmitem-se. Apenas usam aparência diversa e instrumentos conformes com as épocas. No mais, são iguais em vícios, grandeza, abjecção ou sublimidade. Que de tudo há em todos. Cada um apanha o rosto por que opta, para a construção do papel dos seus dias. O rosto, esse livro aberto! Nascemos apenas com risos e choros. Depois vamos vincando o rosto com as marcas da alma e dos actos. Isso. Como as marcas de canteiro espalhadas pelos blocos de pedra das colunas e paredes do meu Mosteiro. Onde ficaram os canteiros? As marcas, sim, lá estão. São a sua perenidade. Riscos fantasiosos, como códigos da alma criativa ou imaginosa. O rosto é isso. A porta dos códigos de tudo aquilo que foi o percurso da alma.
Quando eu era novo como tu, frei João de Chiqueda, uma velha perguntou-me qual era o caminho da salvação. Fiquei confuso e reparei que o hábito cisterciense de S. Bernardo não me tinha ensinado a resposta a esta pergunta, que toda a gente alguma vez na vida faz. Voltou a perguntar-me qual era a regra, a boa regra… Fixei-a e notei que ela, como muitos, queria uma regra, um mandamento, um código que lhe servisse de referência do bem e do mal, que servisse de fundamento do amor e do ódio, que fosse... que fosse... o substituto do homem. Nunca se pode substituir o homem por uma regra. Respondi-lhe que não havia regra, que o caminho da salvação era aquele que cada um fazia, no desdobrar da sua rectidão. Olhou-me com um olhar do início do mundo, talvez de bruxa, talvez de santa, talvez de memória de toda a vida, e perguntou-me, então, que idade tinha. Viu-me a olhar para dentro de mim, para contar, não em dias, mas em coisas que se pensam, e disse:
  • Não respondas. Talvez tenhas vinte, talvez oitenta, talvez tenhas vivido sempre. Tu não hás-de ter idade, nunca!
 E foi-se a ouvir os ventos, para o lado da serra dos Candeeiros. Que idade tenho agora, meu amigo? Andei muito em poucos anos. Agora o mundo desaba, como apocalipse, nesta terra de Portugal. Não vedes? Já, não há monges para rezar o ofício. Fugiram dos seus próprios medos. As pedras ficarão sozinhas a guardar os sons dos mortos e as memórias... Melhor é deixar as memórias caladas. Há sempre abjecções e grandezas no sótão de cada alma. E é quase sempre impossível separar umas das outras. Também nos conventos. Sei lá o que for grandeza e o que foi baixeza em Santa Maria de Alcobaça!

Também eu escondi o meu hábito branco. Está embrulhado no escapulário negro, num dos jazigos em volta da Capela da Senhora do Desterro. Disfarcei-me com este burel de campónio. Só o cinturão me faz lembrar que fui frade do mosteiro. Só eu sei o segredo da porta dos mortos, que abre no transepto, à direita, e dá para os túmulos daqueles príncipes, Pedro e Inês, que tanto se amaram. Deambulo à hora de trevas, pelo espaço da nave, gritando as loucuras de tudo o que devia ter sido e não foi. Até que a luz do dia, inimiga de tudo o que já não existe, me empurra para o sossego do cemitério, anichado numa qualquer capela de alguém, que diz ter sido gentil-homem. Não serás mais cisterciense, irmão, pois não haverá mais cistercienses nesta terra. Mas tenho um segredo para vós. Vinde. As minhas deambulações nocturnas, pela imensidão do convento, não são apenas para lamentar o que já não existe. Andei a recolher o espírito de todos estes séculos. Aquilo que não foi na voragem do saque, de que tudo foi objecto, quando os frades se foram. - Vinde, ainda, frei João de Chiqueda. - É tarde, frei Elias. A noite vai no seu termo. Ide para o vosso refúgio. Quando o dia nascer, reinará de novo o ódio onde antes se ouvia o solene canto gregoriano.
 - Ainda não. A última coisa que faço, todas as noites, depois das minhas deambulações, é ir ver a porta dos sinais. Para mim, esta casa não se caracteriza por naves e claustros, capítulo e biblioteca. A geografia do convento é a geografia das suas portas. Uma porta é como a luz na sua luta com as trevas. Uma porta é sempre uma entrada e uma saída. Por ela se entra para o céu ou se sai para o inferno. A grande porta de entrada do Mosteiro é a porta das vaidades, solene, de arquivoltas. É sempre solene a aparência e a vacuidade. Própria de quem quis fazer da terra o arquétipo do céu e não ao contrário. A consequência foi pretender fazer do Senhor Deus um criado às ordens, para todas as conveniências. Por ela se entra neste pequeno mundo modelo, rodeado pelo grande mundo exterior. Ora, o que devia ser o modelo para todo o mundo era, nalgumas coisas, trinta vezes pior que o mundo todo.


Todos os grandes templos têm esta porta solene. Nalguns casos chamam-lhe pórtico da glória ou porta do paraíso. Sempre foi pretensão da soberba atar e desatar na terra para que fosse atado e desatado no céu. Muitas vaidades e ambições, de tantos, teria o Senhor Deus que atar e desatar! Do outro lado, por baixo do dormitório dos conversos, que depois foi palácio, fica a porta da micha. Sempre me interroguei acerca do nome. Há dias, melhor, há noites, encontrei um velho escrito do tempo de Claraval.  De S. Bernardo, com certeza. Escapou, por acaso, à sanha dos lojistas ou teria como destino embrulhar mercearias. A Lua iluminou-me a leitura do que devia ser o modelo de uma abadia. Os cistercienses nada faziam ao acaso. Tudo tinha um significado. Isso refinou-lhes o sentido para o bem e para o mal. Lá estava, porta da micha. Do termo miche, pão pequeno. Era a porta das esmolas. Nunca ninguém ficou com fome na terra de Alcobaça. O que saía dos celeiros, para ser dado, não regressava de novo. Há sempre uma mão que dá e uma mão que recebe. Quanto mais davam, mais tinham. A ruína surgiu quando começaram a dar com mão pequena e a tirar com mão grande. Semearam a ira. O fim tornou-se uma iminência». In Luís Rosa, O Claustro do Silêncio, Editorial Presença, Lisboa, 2002, ISBN978-972-23-2902-6.

Cortesia de E. Presença/JDACT