«E já os mouros a haviam intitulado Calabicastro,
por síncope de Escalabis Castrum, sendo ao mesmo tempo conhecida e venerada
dos católicos com o nome de Santarém, o qual como epitáfio lhe puseram,
para conservar a memória do sepulcro de Santa Iria.
«A ambição romana, que,
em nome, como em posse, queria fazer tudo seu - diz fr. Luiz de Sousa - lhe pôs
o de Proesidium Julium, e metendo
dentro moradores romanos, como quem conhecia a força do sítio, honrou-a com título
e privilégios de Colónia Romana. E porque o lugar era capaz de tudo, assentou nele
uma das tres Relações ou casas de justiça com que se governava a Lusitânia, a
que chamavam Conventos jurídicos. Eis a derivação dos três nomes, por que
foi conhecida Santarém.
Mas na mudança de nome,
se bem se considera, diz a crónica dos carmelistas descalços, não perdeu o primeiro
de Scalabis,
ou (Bis-Scala), por ser agora a Escala, ou Escada dúplice, em que a Terra subiu
de ponto, dando túmulo à Santa Iria, e a Santa dando o seu nome à Terra, em que
se fez um Empório de singulares prodígios. Em eminente sítio, entre dilatadas
campinas, que fertiliza o Tejo, e à direita dele, está situada Santarém, 75 km ao
NE de Lisboa, na latitude de 39° 19’ e longitude 9° 50’'. Por causa de dois profundos
vales, que se abatem no andar daquele formoso rio, e ainda por amor de outras
quebradas, parece o monte uma curta cordilheira, a qual sobre a coroa de seus
montes, em plano igual ao daquele que pelo lado do norte os reúne,
distinguindo-se pelo do sul a pouca distância que lhes serve de continuação, é
assento da grande povoação de Santarém, saudável por seus ares puríssimos, e aprazível
por suas vistas esplêndidas.
No primeiro dos seus vales,
que é o mais largo, e, junto à margem do rio, está situada a graciosa aldeia da
Ribeira, a qual pela sua grandeza bem merecia o privilégio de vila; e no
segundo, o cada vez mais triste e decaído lugar do Alfange. Além do Tejo, para
o nascente, estendem-se os feracíssimos campos de Almeirim, tão celebrados da
antiguidade, pela abundância dos frutos, criação de gados e ligeireza dos
cavalos: e da parte do nordeste também bordam a margem direita do rio campos
menos extensos, mas igualmente férteis.
Alguns anos faz o Tejo,
em uns e outros, o ofício de Nilo no Egipto, e às vezes é tamanha a enchente, que
leva grande destruição às terras marginais, como também o notável rio dos
Montes de Al-Kamar costuma fazer. Caminhando do norte para sudoeste, vêem-se
outeiros e vales cobertos de olivedos e árvores frutíferas, e semeados de habitações
pitorescas, com que a terra igualmente se torna atractiva e farta. No Livro
das Grandezas de Lisboa dá fr. Nicolau de Oliveira a seguinte curiosa
noticia:
- Em Santarém há tanta cópia de azeite, que ouvi dizer algumas vezes a moradores daquela vila, que se largassem o azeite, que tem, faziam um rio tão grande como o Tejo; e assim se diz por exageração Olivaes de Santarém ; e deste azeite se leva só para Flandes em cada um ano mais do três mil pipas, afora o que vai para as conquistas; e tanto trigo, que a não haver tanto concurso de gente estrangeira neste Reino, e a faltarem-lhe as navegações de suas conquistas, bastava para sua sustentação; e se cultivarão bem os campos e pauis que se tem (o que se poderá fazer com pouco custo) se poderão mandar daqui para fora embarcações carregadas de trigo, assim como agora vem de outras partes.
Em todos os tempos se têm
dito e escrito coisas exageradas a respeito de Santarém: é todavia fora de dúvida
que as grandes várzeas e colinas, que a circundam, formam um quadro imenso e formosíssimo.
A nossa alma sente-se arrebatada perante ele, e quer exclamar com o cantor das
Georgicas: O ubi campi!
No remate do primeiro
dos montes, para o ladu do sul, e quase a prumo sobre o rio, fica o bairro da
Alcáçova, antiga fortaleza, para a qual se entrava por ponte levadiça; o do
monte próximo, seguindo para oeste, é coroado pelo cemitério dos Capuchos. Tal
é o sitio, onde foi edificada uma das mais insignes povoações deste reino. Depois
da descrição primorosa, que tez do mesmo lugar o nosso clássico fr. Luiz de
Sousa, foi temeridade esboçá-lo. Mas por não ser um esboço desenho bem acabado,
pode aquele tolerar-se, visto ser-nos preciso, antes de entrarmos no assunto principal
do livro, indicado pelo titulo deste, dizer onde fica Santarém. Ocultar essa
circunstância era faltar ao rigoroso dever de historiador.
Prometemos dizer a
verdade, a qual bastante nos custou a apurar do muito que lemos e ouvimos
acerca desta terra monumental. Também referiremos o que ouvimos, repare-se bem,
porque em matérias onde faltam autores, vale de muito a tradição vulgar, e as coisas
que os antigos traziam entre si, como autênticas e verdadeiras, e as ensinavam
a seus descendentes. Seremos talvez prolixo, transcrevendo ou citando passagens
e documentos curiosos. Assim o entendemos.
Santarém é uma terra,
que a maior parte dos portugueses não conhece, e que Portugal deveria ufanar-se
de possuir. Todavia, quantos dos nossos compatriotas terão viajado pelo estrangeiro,
sem se lembrarem talvez de que existe Santarém! Proh pudor!
É o caso de se dizer com um antigo poeta nosso:
Se um estranho à terra vem,
dizeis todos em geral:
nunca aqui chegou
ninguém;
e do vosso natural
nada vos parece bem.
Enfim que por natureza,
e constelação do clima,
esta nação portuguesa
o nada estrangeiro
estima,
o muito dos seus
despreza.
In Zeferino Brandão, Monumentos e Lendas de Santarém, Lisboa, David
Corazzi Editor, 1883, Makew Parr Collection, Magellan and the Age of Disvovery,
presented to Brandeis University, 1961, Tipografia Horas Românticas, Rio de
Janeiro.
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