quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

500 anos de Contactos Luso-Chineses. Fernando Correia de Oliveira. «Em Portugal, com a morte de Manuel I, sobe ao trono João III. O reino, com 1,3 milhões de habitantes, censo de 1532, contra os 150 milhões de chineses e 18 milhões de japoneses, continuava miserável, ciclicamente varrido por fomes, crises monetárias, levantamentos camponeses e surtos epidémicos»

Porto de Macau, gravura de 1641
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Finalmente, um pé em terra
O suborno, a mentira, a sede do lucro e a iniciativa particular conseguiram, na década de 50 do século XVI, aquilo que expedições militares e diplomáticas da coroa portuguesa não tinham até então conseguido. Assumindo as identidades falsas malaia ou siamesa, dando presentes clandestinos aos mandarins de Guangzhou, os comerciantes portugueses, aliados a piratas e contrabandistas chineses e japoneses, obtiveram aquilo com que o rei Manuel I sonhara: um estabelecimento na China. O pragmatismo e o interesse mútuo locais engendraram a fórmula Macau, com Lisboa ou Beijing fora do quadro nos primeiros anos. Não admira que o primeiro acordo de comércio luso-chinês fosse oral.

Expulsos de Guangzhou e de toda a área do delta do rio da Pérola em 1522-23, os portugueses não deixaram de comerciar, clandestinamente, com a China. Em iniciativas particulares e arriscadas, sem o conhecimento oficial da coroa em Lisboa, os navios comandados por portugueses mas tripulados, na maioria, por uma mescla de marinheiros malaios, chineses ou japoneses, acorriam como moscas ao mel costeiro nas províncias de Fujian ou de Zhejiang, onde os mandarins e comerciantes locais (os chinchéus, como lhes chamavam os textos portugueses da época) se comprometiam no comércio, contra as ordens de Beijing.
Os portugueses estavam a beneficiar de uma outra situação: desde 1523, o Japão tinha sido banido como Estado tributário no comércio com a China. Vivendo em permanente guerra civil, o arquipélago nipónico enviara delegações rivais ao continente, provocando desordens nas costas de Fujian. A dinastia dos Ming decretara a proibição de comércio com os vizinhos e os recém-chegados portugueses passaram a servir de intermediários nessas trocas, um jogo arriscado, mas que dava muito lucro (num triângulo em que as embarcações lusas, carregadas de pimenta e outras especiarias compradas no Malabar, descarregavam na China, onde iam buscar seda crua, para depois a venderem por prata e cobre japonês, que por sua vez ia parar à China).
Em Portugal, com a morte de Manuel I, sobe ao trono João III. O reino, com 1,3 milhões de habitantes (censo de 1532, contra os 150 milhões de chineses e 18 milhões de japoneses), continuava miserável, ciclicamente varrido por fomes, crises monetárias, levantamentos camponeses e surtos epidémicos. Contrariando a visão messiânica do pai, João III orientou a política externa portuguesa de forma muito mais pragmática. Na Ásia Oriental, por exemplo, em vez de continuar a procurar um relacionamento diplomático de igual para igual com o império chinês, Lisboa passou a admitir como facto incontornável o aumento do relacionamento dos mercadores privados a operarem no Índico ou no Pacífico. Com esse comércio, que a coroa não controlava, talvez se abrissem mais facilmente as portas que armadas, salvas de canhão ou embaixadores oficiais não tinham conseguido abrir.
Além de uma maior tolerância no modo de lidar com as comunidades mercantis asiáticas e do reconhecimento de que a sua cooperação seria crucial para a reabertura do mercado chinês, Lisboa passava a ter outros interlocutores locais. Para a coroa portuguesa, o imperador da China deixava de ser o principal alvo diplomático, em favor dos altos funcionários provinciais, numa constatação de que nestes residia, em larga medida, o poder de aceitação ou recusa da presença lusa por aquelas paragens ou a criação do sempre almejado entreposto.
O rei, em Lisboa, deixava de se preocupar em controlar as múltiplas iniciativas privadas dos seus súbditos no Extremo Oriente, mas esse papel de controlo e resistência passou para os capitães de Malaca. Esses oficiais receavam que a criação de um qualquer estabelecimento particular nas costas do Sul da China concorresse com Malaca enquanto grande metrópole abastecedora do comércio com a China e o Japão. Por outro lado, defendendo interesses estritamente pessoais, esses capitães lutavam pelo privilégio (inerente ao cargo) de fazerem uma viagem de comércio Malaca-China-Japão, ou de passarem esse direito, por venda, a parentes ou amigos.
Por outro lado, o Estado da Índia, que em 1550 iniciara uma viagem anual de comércio entre a China e o Japão, também ela concessionada, demonstrava que o interesse da coroa não tinha desaparecido por completo. Apesar dessas interferências oficiais, o privado prevaleceu, e iria dar lugar ao estabelecimento de Macau, afinal, um projecto luso-asiático marginal à coroa portuguesa e ao Estado da Índia.
Embora a viver os seus últimos anos, a dinastia Ming procurou combater o comércio ilegal em Fujian e Zhejiang. Num incidente em Março de 1549, centenas de piratas, contrabandistas e aventureiros foram mortos, feridos ou capturados pela armada imperial chinesa. Expulsos dessas costas, os portugueses voltaram-se de novo para Guangzhou. Quando, três décadas antes, haviam expulsado os portugueses do delta do rio da Pérola, por pressão de Beijing, os mandarins das províncias de Guangdong e de Guangxi estenderam as medidas restritivas de comércio aos outros estrangeiros. Em resultado disso, as actividades comerciais na zona diminuíram substancialmente e a economia local foi muito prejudicada.



Perspectiva de Macau, 1598




A sociedade chinesa dividia-se em debates sobre a questão do comércio externo, havendo um partido que defendia trocas com os Estados marítimos apenas como meio para os apaziguar, para que a segurança das zonas costeiras pudesse ser mantida. Outro partido defendia que a manutenção do comércio marítimo era vital para o bem-estar económico das populações das províncias costeiras». In Fernando Correia de Oliveira, 500 anos de Contactos Luso-Chineses, Público, Fundação Oriente, 1998, ISBN 972-8179-28-6.

Cortesia de Fundação Oriente/JDACT