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Finalmente, um pé em terra
O suborno, a mentira, a sede do lucro e a iniciativa particular conseguiram,
na década de 50 do século XVI, aquilo que expedições militares e diplomáticas
da coroa portuguesa não tinham até então conseguido. Assumindo as identidades falsas
malaia ou siamesa, dando presentes clandestinos aos mandarins de Guangzhou, os
comerciantes portugueses, aliados a piratas e contrabandistas chineses e japoneses,
obtiveram aquilo com que o rei Manuel I sonhara: um estabelecimento na China. O
pragmatismo e o interesse mútuo locais engendraram a fórmula Macau, com Lisboa
ou Beijing fora do quadro nos primeiros anos. Não admira que o primeiro acordo
de comércio luso-chinês fosse oral.
Expulsos de Guangzhou e de toda a área do delta do rio da Pérola em
1522-23, os portugueses não deixaram de comerciar, clandestinamente, com a
China. Em iniciativas particulares e arriscadas, sem o conhecimento oficial da coroa
em Lisboa, os navios comandados por portugueses mas tripulados, na maioria, por
uma mescla de marinheiros malaios, chineses ou japoneses, acorriam como moscas
ao mel
costeiro nas províncias de Fujian ou de Zhejiang, onde os mandarins e
comerciantes locais (os chinchéus,
como lhes chamavam os textos portugueses da época) se comprometiam no comércio,
contra as ordens de Beijing.
Os portugueses estavam a beneficiar de uma outra situação: desde 1523,
o Japão tinha sido banido como Estado tributário no comércio com a China.
Vivendo em permanente guerra civil, o arquipélago nipónico enviara delegações
rivais ao continente, provocando desordens nas costas de Fujian. A dinastia dos
Ming decretara a proibição de comércio com os vizinhos e os recém-chegados portugueses
passaram a servir de intermediários nessas trocas, um jogo arriscado, mas que
dava muito lucro (num triângulo em que as embarcações lusas, carregadas de
pimenta e outras especiarias compradas no Malabar, descarregavam na China, onde
iam buscar seda crua, para depois a venderem por prata e cobre japonês, que por
sua vez ia parar à China).
Em Portugal, com a morte de Manuel I, sobe ao trono João III. O reino,
com 1,3 milhões de habitantes (censo de 1532, contra os 150 milhões de chineses
e 18 milhões de japoneses), continuava miserável, ciclicamente varrido por fomes,
crises monetárias, levantamentos camponeses e surtos epidémicos. Contrariando a
visão messiânica do pai, João III orientou a política externa portuguesa de
forma muito mais pragmática. Na Ásia Oriental, por exemplo, em vez de continuar
a procurar um relacionamento diplomático de igual para igual com o império
chinês, Lisboa passou a admitir como facto incontornável o aumento do relacionamento
dos mercadores privados a operarem no Índico ou no Pacífico. Com esse comércio,
que a coroa não controlava, talvez se abrissem mais facilmente as portas que
armadas, salvas de canhão ou embaixadores oficiais não tinham conseguido abrir.
Além de uma maior tolerância no modo de lidar com as comunidades
mercantis asiáticas e do reconhecimento de que a sua cooperação seria crucial para
a reabertura do mercado chinês, Lisboa passava a ter outros interlocutores
locais. Para a coroa portuguesa, o imperador da China deixava de ser o principal
alvo diplomático, em favor dos altos funcionários provinciais, numa constatação
de que nestes residia, em larga medida, o poder de aceitação ou recusa da
presença lusa por aquelas paragens ou a criação do sempre almejado entreposto.
O rei, em Lisboa, deixava de se preocupar em controlar as múltiplas
iniciativas privadas dos seus súbditos no Extremo Oriente, mas esse papel de
controlo e resistência passou para os capitães de Malaca. Esses oficiais
receavam que a criação de um qualquer estabelecimento particular nas costas do
Sul da China concorresse com Malaca enquanto grande metrópole abastecedora do
comércio com a China e o Japão. Por outro lado, defendendo interesses estritamente
pessoais, esses capitães lutavam pelo privilégio (inerente ao cargo) de fazerem
uma viagem de comércio Malaca-China-Japão, ou de passarem esse direito, por
venda, a parentes ou amigos.
Por outro lado, o Estado da Índia, que em 1550 iniciara uma viagem
anual de comércio entre a China e o Japão, também ela concessionada, demonstrava
que o interesse da coroa não tinha desaparecido por completo. Apesar dessas
interferências oficiais, o privado prevaleceu, e iria dar lugar ao
estabelecimento de Macau, afinal, um projecto luso-asiático marginal à coroa
portuguesa e ao Estado da Índia.
Embora a viver os seus últimos anos, a dinastia Ming procurou
combater o comércio ilegal em Fujian e Zhejiang. Num incidente em Março de
1549, centenas de piratas, contrabandistas e aventureiros foram mortos, feridos
ou capturados pela armada imperial chinesa. Expulsos dessas costas, os
portugueses voltaram-se de novo para Guangzhou. Quando, três décadas antes,
haviam expulsado os portugueses do delta do rio da Pérola, por pressão de
Beijing, os mandarins das províncias de Guangdong e de Guangxi estenderam as
medidas restritivas de comércio aos outros estrangeiros. Em resultado disso, as
actividades comerciais na zona diminuíram substancialmente e a economia local
foi muito prejudicada.
A sociedade chinesa dividia-se em debates sobre a
questão do comércio externo, havendo um partido que defendia trocas com os
Estados marítimos apenas como meio para os apaziguar, para que a segurança das
zonas costeiras pudesse ser mantida. Outro partido defendia que a manutenção do
comércio marítimo era vital para o bem-estar económico das populações das
províncias costeiras». In Fernando Correia de Oliveira, 500 anos de Contactos
Luso-Chineses, Público, Fundação Oriente, 1998, ISBN 972-8179-28-6.
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