Estão pelos telhados e janelas
velhos e moços, donas e donzelas. In Camões
Goa
«Nas tardes de Maio, a brisa da tarde rumoreja por entre os lestos
ramos da palmeira um ciciar muito parecido com o bater das asas de uma ave; o
vento do mar alto sacode os troncos das mangueiras e jaqueiras num ruído
flácido e sussurrante, próprio do bosque; a areia volteia em espirais pelo
Campal, e o mar ronca, imitando o despenhar de uma cascata, por entre os bancos
de Gaspar-Dias. A fortaleza de Reis Magos, na margem direita, parece irromper
das águas, deixando ver, ao passo que subimos o rio, as trincheiras que
gradualmente sobem, e a bela fachada da igreja, olhando para o interior. Aproamos
à cidade da igreja, olhando para o interior. Aproamos à cidade de Nova Goa.
Vêem-se no outeiro de Pangim
as escadarias e a igreja da Conceição, e de outro lado as umbrosas e
verdejantes margens de Verém e Betim ostentam toda a opulência tropical. Nas
pequenas enseadas aglomeram-se as canoas carregadas de frutas e flores, que vão
depois fornecer o mercado da capital. Pangim
no sopé do outeiro, em alguns pontos coberto de arvoredo e subindo a encosta, deixa
ver os seus prédios meio escondidos, como uns brancos lençóis suspensos ao vento.
Pelo nascente, destacam-se os casarios de Ribandar, a igreja da Piedade, Chorão,
e mais além, num fundo dourado pelo sol e cortado pelo rio, as torres da Velha
Goa, quais flocos de neve confundidos no horizonte com as altas serranias das
Novas Conquistas.
Entre Pangim e Betim atravessam o rio as tonas carregadas de
gente. Marinheiros de corpo nu, cabelo atado no alto da cabeça e luzidio de azeite,
descem o rio cantando uns, fumando outros. Como a cidade é quase morta, ouvem-se
perfeitamente o bater do hélice dos barões a vapor e as ordens do patrão, à
inglesa, stopper! De um e outro lado, os passageiros entram e saem as lanchas,
que fazem carreira entre Pangim e Verém. Uns de trajos pagãos, turbante branco
ou barrete bordado a galão, pálidos, amarelentos e desconfiados, desaparecem
pressurosos, sacudindo a trança ao vento e batendo os pés no chão para sacudir
a poeira das sandálias; outros, meneando muito a cabeça, contando pelos dedos,
bocejam com incrível tédio. Conversam num tom áspero e cantante; vão
apressados, sempre em grupos falando nos seus negócios, oferecendo uns aos
outros a areca e o bebel ou passando de mão a mão o canudo, que sorvem a largos
tragos. Os interessados das comunidades e os demandistas que vêm à capital
tratar de seus negócios, calção curto até ao joelho, chinelos sem peúgas e um
chapéu alto de dimensões colossais, sobraçam rolos de papel e seguem o seu
caminho em agitada conversa. O sério burguês, proprietário ou advogado, caminha
sempre seguido de uma turba de clientes. Mais polido, de porte amaneirado e
cheio de si, o indígena educado à portuguesa dá-se ares entre os seus amigos,
tendo sempre o cuidado de se referir amiudadamente ao seu trato com pessoas
gradas da província, juiz, delegado, o que não deixa de causar sensação e
provocar comentários entre os seus admiradores. Raparigas de belos olhos
pretos, cabelo basto e negro, seguem a passo curto para o bazar, e vão pelas ruas
de Pangim vender os seus géneros. De uma das dobras do pano, habilmente fisgada
à cintura e que deixa ver a coxa, tiram de quando em quando grão assado e
caroços de tamarindo, com que entretêm o apetite. Lestas e tagarelas como são,
andam apressadas, jogando descompostamente os quadris e rastejando umas
sandálias feitas de ola, que mal lhes cobre a planta do pé.
De vários pontos da capital, logo pela manhã cedo, grupos de criados
dirigem-se para o novo mercado pela rua do aterro, dando-se ao derriço,
beliscando e jogando ditos obscenos. Daqui e ali se ouvem garridas risotas e o
lânguido mandó ao som da picareta, com que o pedreiro vai aperfeiçoando
o material para uma casa nova ou para as obras do aterro. As moças que os
ajudam em conduzir a cal e as pedras, sobem os andaimes espicaçadas por uns
ditos amorosos e outras vezes rogando pregas contra os mais atrevidos. Este
passatempo é, característico da sensualidade indiana, e a não serem estas
raparigas, os pedreiros e carpinteiros, risonhos e dengosos, tanto a mulher
como o homem na Índia, ainda que extremamente sensuais, são no geral tristes,
principalmente a mulher que chega a ser lúgubre no seu trajo de preceito, o ôll.
O farangui, como lá se chama, julgando-se ainda o fidalgo de
outras eras, entra em cena mais tarde, segundo a pragmática. Levanta-se sempre
tarde, lê assiduamente de manhã e à noite os romances de Camilo, Dumas, Paul
Kock, e se não é precisamente um Pico de Mirandola ou um fervoroso
adepto de Voltaire, não deixa de saborear Hugo e Guerra Junqueiro
com certa predilecção.
Não é revolucionário, por índole, mas amantético,
gostando de Soares de Passos e João de Lemos, e, sobretudo, da história de
Carlos Magno e os Doze Pares de França. Um espadachim em miniatura e fanfarrão
como o espanhol; não namora com os dandys de cá, mas julga-se com
direito de ser amado, e por força tem uma noiva, a mais bonita e elevada na
sociedade! Se é militar, não se espreguiça tento à espera que e criada lhe vai
levar o café à cama, e, como o tempo urge, não tarda a fazer-se sentir pelas
ruas o rastejar estrepitoso da espada do garboso alferes. Todo ele é um primor.
O calçado tem o brilho dos seus olhos, os botões fazem-lhe como estrelas, e a
banda, bem se vê, cingiu-lha a mão mimosa da esposa ou irmã». In
Frederico Diniz D’Ayalla, Goa Antiga e Moderna, Ésquilo edições e multimédia,
Revisão de Adalberto Alves, 2011, ISBN 978-989-719-001-8.
Murgão
A saudade do Álvaro José (onde quer que estejas!)
Cortesia de Ésquilo/JDACT