«O Mário Rainho alongava-se em biografias e hagiografias, em dados
contornos, enquanto eu, de espírito cada vez mais giratório, me espairecia na
lonjura dos acontecimentos, para trás e para a frente dos carris do tempo, ora
evocando Camilo Castelo Branco, que dizia que até os pardais se
assustavam com aquele touro negro de ferro, a galgar as travessas, ora
colocando o engenheiro Horta, na dianteira, a
corrigir erros e cálculos do fidalgo João na estação de Caminho de Ferro da Beirã.
No dissêncio dos dias, consegui pô-los a conversar acerca de cálculos,
topografias e texturas de construção, conseguindo, com inegável sucesso, que o
tempo se encurtasse para ser mais legível a história e mais fácil a construção
dos amanhãs. Bom conhecedor do cadastro de Marvão, o Horta agradeceu a João da
Câmara os seus ensinamentos, este louvou-lhe as simpatias e as referências da
memória.
E a mim, narrador do futuro, testemunha credenciada de consensos, aprouve-me
a função de assistir àquele acontecido encontro, forrado, para aquém, da
espessura dos dias. O meu ajudante, com a fraqueza das forças a afadigarem as
suas energias, foi-me levando para o jardim do Parque, todo recheado de árvores
frondosas, de cujos galhos os passarinhos faziam coreto, para aí entoarem seus
trinados de alegria. Era um jardim cuidado e frequentado por gente, que dele
fazia uso vivo. Pessoas sentadas nos bancos, com ar despreocupado e livre, conversavam
amenamente com figurantes que passavam, e a quem davam dedos grandes de
conversa, para terapia da monotonia ou da solidão da mesma mesmice dos dias.
E, enquanto ele me continuava a falar das rivalidades com Marvão, eu, a
boiar em mim, ia estendendo o olhar gostoso para aquela natureza, ali
trabalhada e ordenada, quando, ao subir a ladeira, nas suas calmas, me apontou
para a estalagem, que se esquinava no encontro de duas ruas. Era a Casa
Parque, de construção de meados do século, denotando qualidade bastante
para compensar os meus depauperados aposentos, já com descrição acima.
Entrámos, a porta tilintou. À entrada, vindo a descer umas escadas, apareceu
a dona, a Isabelinha. Pessoa graciosa e delicada, cumprimentou o Garcia
e, adivinhando quem era, me desejou ali logo boa estada no Marvão. Que me
sentisse bem ali na sua casa, informando-me de que, à esquerda, era o
restaurante e, lá em cima, apontava para as escadas, donde tinha acabado de
vir, eram os quartos. Agradou-me a ambiência e a arquitectura de interiores.
Entretanto, conheci o marido da dona, o Guimarães, o estalajadeiro.
Reservado e contido, senti, pela cara dele, prazer em me ter na sua casa. De ar
circunspecto e respeitável, teceu considerações acerca de Marvão, falando-me
também das suas origens do Minho, das bandas do Gerês.
Eu, agradado dele e dela, ia soletrando a vontade interior de ali fazer
o meu domicílio, cercado que estava daquele bem-estar, e tendo, como vizinhança
bucólica, aquela passarada chilreante, que, do alto dos seus estreitos
palanques, diziam músicas melodiosas.
Os estalajadeiros, a Isabelinha e o Guimarães, foram o
aconchego familiar, que logisticamente me suportaram a estada, orgulhosos de mim,
e eu cioso do orgulho deles, dedicando-lhes, em silêncios, agrados, ficando à
minha conta a dívida de afectos, que ainda perdura e que nunca prescreverá. Na
sequência dos dias, dos meses e dos anos, sempre recebi deles tratamento
especial, com louvores por eles publicados e de que amiúde me chegavam ecos
frequentes, o que inventariava nos meus escaninhos, onde tenho instalado o
culto da gratidão.
Foi naquela guarida e abrigo que me estalagei, na companhia daquela boa
gente, que com o meu conforto se cuidava. À roda do fogão de lenha, no Inverno,
todos em conclave, falávamos de tudo e de todos, sempre pela linguagem dos
afectos, que, por lá, abundavam, como o frio». In Aníbal Belo, Carta de Marvão,
Edições Universidade Fernando Pessoa, 2001, ISBN-972-8184-66-2.
Cortesia da U.F. Pessoa/JDACT