jdact
«Tal como a primeira imagem de Afonso Henriques, também esta
não se difundiu apenas em Portugal. Surpreendentemente, encontramos dela um
ligeiro eco em Inglaterra no princípio do século XIII, ou seja aproximadamente
pelos anos em que o poema jogralesco devia correr também em Portugal. Aparece
na conhecida “Chronica” de Rogério de Hoveden, redigido durante os primeiros
anos do século XIII. Diz ele, a seguir a uma notícia relativa ao ano de 1187:
- Nesse mesmo ano o cardeal Jacinto então legado papal para toda a Hispânia, depôs muitos abades, quer por causa dos seus méritos quer pelo seu comportamento temerário. Querendo também destituir o bispo de Coimbra, Afonso, rei de Portugal, não permitiu que ele o destituísse. Pelo contrário, mandou que o dito cardeal abandonasse a sua terra imediatamente, porque de contrário cortar-lhe-ia um pé. Ouvindo isto, esse legado regressou imediatamente a Roma, e o bispo de Coimbra ficou com a sua diocese em paz.
O cronista continua então o seu texto enumerando as
principais conquistas de Afonso Henriques e termina-o com uma narrativa
relativamente pormenorizada do desastre de Badajoz, embora situando-o em
Silves, por evidente confusão com a recente conquista desta cidade por Sancho
I. não é menos curioso que esta ‘estória’ inclua alguns pormenores
significativos, que existem também na “Gesta”, como seja o do rei ter batido
com a perna no ferrolho da porta da cidade e ter sido depois preso pelo rei
Fernando II. É evidente o equívoco do ano ou do nome do legado papal, pois em
1187 já Afonso Henriques tinha morrido. Trata-se, porém, de um importante
testemunho da narrativa dos feitos do primeiro rei de Portugal, dando dele uma
imagem mais próxima do retrato traçado pelos cavaleiros de Coimbra do que do
composto pelos cónegos regrantes de Santa Cruz.
O Rival dos Senhores Feudais
Se o contraste entre os “Annales domni Alfonsi portugallensium
regis” e a “Gesta de Afonso Henriques” é grande, não é menor quando ambos se
comparam com a imagem que resulta das tradições conservadas por algumas
famílias da nobreza senhorial e transmitidas ainda hoje pelos livros de linhagens.
Quero-me referir sobretudo a duas anedotas que têm algo de semelhante entre si.
Numa, o rei é censurado asperamente pelo seu mordomo-mor, Gonçalo de Sousa, por
lhe tentar seduzir a mulher na sua própria casa. Gonçalo surpreende-os,
manda-lhe rapar o cabelo e envia-a para a terra dela na presença do rei, a
cavalo num sendeiro tocado pelos moços da casa e sob as chufas e impropérios
dos criados. O rei protesta timidamente, invocando o castigo infligido a sete
condes por um adiantado de seu avô, o rei Afonso VI de Leão, mas isso apenas
lhe vale uma ameaça violenta do mordomo, que invoca também o assassinato do
mesmo vassalo. A anedota não conta mais. Mas é evidente que a resposta fica
impune. O rei não ousa ripostar perante a ameaça de Gonçalo de Sousa.
Na outra anedota o rei é apresentado a comer em Coimbra,
provavelmente na corte. Entre os comensais estão, além dele, Sancho Nunes de
Barbosa, que era casado com D. Teresa Afonso, segundo o texto filha do rei
(segundo os documentos da época sua irmã Sancha Henriques), Gonçalo de Sousa e
Fernão Mendes, o violento e colérico senhor de Bragança. Começam a fazer troça
do braganção por lhe cair a nata pela barba. Furioso, ele rompe com o rei e com
Gonçalo de Sousa, até que Afonso Henriques, atemorizado, sem dúvida, pelas suas
ameaças, transfere para ele para ele as terras de que o mordomo-mor era
governador, e, caso ainda mais extraordinário, obriga a sua filha a abandonar
Sancho Nunes para casar com o ofendido. Afonso Henriques aparece como um chefe
impotente e passivo, não só incapaz de castigar a cólera excessiva de um
fidalgo de província mas de tal modo fraco que cede às suas exigências mais
humilhantes (ver Livro de linhagens do conde D. Pedro, pp 436-437)». In José Mattoso,
As Três Faces de Afonso Henriques, Publicação Penélope, Fazer e Desfazer a
História, 1992, Dossier, Edições Cosmos, Lisboa, ISSN 0871-7486.
Cortesia de Edições Cosmos/JDACT