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Amor do Povo
«Interessa-nos o povo porque nele se apresenta um feixe de problemas que
solicitam a inteligência e a vontade; um problema de justiça económica, um problema
de justiça política, um problema de equilíbrio social, um problema de ascensão
à cultura, e de ascensão o mais rápida possível, da massa enorme até hoje tão
abandonada e desprezada; logo que eles se resolvam terminarão cuidados e interesses;
como se apaga o cálculo que serviu para revelar um valor; temos por ideal construir
e firmar o reino do bem; se houve benefício para o povo, só veio por acréscimo;
não é essa, de modo algum, a nossa última tenção.
Aforismo
Conviria talvez distinguir entre os aforismos e não os adorar a todos
igualmente nem passar sobre todos a mesma condenação desdenhosa. O aforismo nem
sempre traduz o desprezo da razão ou uma mal entendida liberdade. Há aforismos
que são como pequenos capítulos do livro que se quereria escrever, como
fotografias tiradas momento a momento dos passos de um homem que marcha direito
e firme pela sua estrada; podem ser tão logicamente encadeados entre si, constituir
tão seguro edifício como o tratado que se vai completando no vagar e no
silêncio. Há porventura até algum merecimento a descobrir neste método; porei em
primeiro lugar a tendência que nele pode haver para uma fuga da retórica, para
uma negativa ante o desejo de encher mais uma página; a métopa do templo, com o
seu fixo, restrito quadro, leva o artista a concentrar-se, a exprimir o máximo
de ideias no mínimo de figuras e de gestos. Por outro lado, é inegável que a
obra extensa é pouco acessível àqueles mesmos que mais precisam de cultura, que
duas ou três frases, esplêndidas no seu isolamento, enérgicas e nítidas, lhes ficam
mais gravadas no espírito do que os longos monólogos. De resto quantas obras se
não resolvem numa série de aforismos? Quantas outras não ganhariam em se
despojar de todo o aparelho de que foi necessário revesti-las para chegarem ao
volume? E grande parte do valor de La Bruyère ou, modernamente, de Alain, pode
estar na forma curta, incisiva e brusca que adoptaram.
Em face deste, há, porém, o aforismo contraditório e incerto, o
aforismo que desafia a paciência e a habilidade dos comentadores, não porque
contenha tão elevado pensamento, tão funda visão da existência, que o ponham acima
da própria humanidade, mas porque o gerou a fraqueza, porque o alimentou a
doença, porque se desenvolveu numa alma incapaz de vigilância. Escreveram-no
homens que estavam talhados para outro destino, que eram medularmente
arquitectos, mas que, surpreendidos, nada mais fizeram do que deixar sobre o
terreno os materiais informes e grosseiros de que haviam de surgir as cantarias
regulares e musicais.
Exclui-se deste modo a possibilidade de épocas que requeiram o pensamento
aforístico, neste segundo sentido da palavra. Ele aparece em todos os tempos,
como produto de uma conformação defeituosa ou de um desastre, sempre como um
sinal de impotência. São os desenhos de pés e de mãos, de olhos e de bocas que o-
pintor coleccionou no seu esboço e de que havia de eleger a figura do herói ou
da virgem. Certamente contêm em si tais aforismos uma tragédia que nos outros
não aponta; Pascal debate-se com o silêncio dos espaços, Nietzsche com a
loucura em que se sente afundar; não se poderá negar esta força dramática; somente
resta saber em que medida é a musa Melpómene salvadora das almas». In Agostinho
da Silva, Considerações e Outros Textos, Editorial Minerva, Alfinete 4, Assírio
e Alvim, 1988.
Cortesia A. e Alvim/JDACT