terça-feira, 29 de maio de 2012

Inês de Castro. António C. Franco: Memória de Inês de Castro. «A sua força advém-lhe desse poder de espiritualizar a matéria, e quando transformou pão em rosas ou abriu em Aveiro os olhos a uma menina cega, transformando as trevas em luz, nada mais fez do que aperfeiçoar a matéria. O ignoto que ela adorou era já o mar português. Pela primeira vez, através dela, conquistámos a distância»


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A Guerra
«As hostilidades entre Portugal e Castela começaram logo nas primeiras semanas do ano de 1335 com a recusa, mais ou menos explícita, do rei de Castela deixar vir para Portugal a filha de João Manuel. Chamou-a à cidade de Touro e lembrou-lhe certas promessas amorosas que dez anos antes lhe tinha feito nesses mesmos campos. Não lhe propunha evidentemente casamento, mas olhava-a longamente. Mandava-lhe ao quarto laranjas doces de Múrcia ainda com flores nos ramos e entretinha com ela uma relação de silêncio e amuo que podia bem lembrar, ou substituir, a ligação amorosa. Constança tinha então 22 anos e penteava amiudadamente, com ar de descuido, o seu longo cabelo. Pousava os pentes de ouro em cima dos baús do quarto e dirigia-se à janela onde contemplava as águas do rio Douro com a mesma serenidade. Apesar do seu estatuto ser cada vez mais o de uma prisioneira, a proximidade de Afonso inspirava-lhe uma paz que, apesar de emblemática e até de artificiosa, lhe espiritualizava o sacrifício. Nada havia entre eles, mas a tensão política entre João Manuel e o rei obrigava este a um jogo cada vez mais prudente em que Constança representava um trunfo considerável.
Tal tensão assumia em Portugal sinais de preparativos militares. A velha rainha, Isabel de Aragão, mãe de Afonso de Portugal, decide fazer uma peregrinação a Santiago de Compostela em sinal de reconciliação e paz entre aquele que era seu filho e aquele que era seu neto, já que a mãe do rei de Castela era sua filha. Não é fácil explicar as virtualidades desta mulher criada num ambiente que se não era único na Europa de então, era pelo menos dos mais expressivos e cultos daquela época. Aquilo que a desgostou ao longo da sua vida não foi tanto a rivalidade constante que sentiu entre pais e filhos, mas sobretudo a ignorância que a rodeava. Não que a expressão viva da humanidade fosse para esta mulher o médico ou o matemático, mas porque para ela só estes podiam ser santos. Raimundo Lúlio, a quem de resto conheceu, é no masculino a obra feminina de Isabel. O saber nela era uma expressão de infinito, que evaporava números e formas. Atravessou várias guerras fratricidas e em todas elas se manteve de fora, dando-nos constantemente a ideia de que o seu lugar não pretendia competir com o dos homens. Isabel de Aragão deve ser vista como o produto dum meio que criou nessa mesma época homens como Lúlio ou Arnaldo Villanova. E neta de Jaime I, esse magnífico rei que se sentava à mesa das tabernas de Barcelona a fazer negócios com os armadores, e filha de Pedro III, que ficou na história com o cognome de “Grande”, porque foi no seu reinado que se conquistou a Sicília e se colonizou o Norte de África. A Catalunha cristaliza neste momento da história peninsular as mais sérias aspirações humanas e os seus homens têm sempre a têmpera dum Lúlio, dum Villanova, dum Muntaner ou então duma Isabel. A conquista progressiva da Península feita no reinado de Jaime I, que chegou às portas de Alicante e conquistou Múrcia em 1266, é depois substituída por uma expansão no Mediterrâneo, que tem tanto de militar e de comercial como de espiritual. A “Ars Magna” de Lúlio é a própria humanidade espiritualizada. Numa fabulosa árvore, ao coexistirem unidamente vários ramos, Lúlio dava-nos uma imagem mesma do Mediterrâneo onde também coexistiam vários ramos, árabes, judeus e cristãos, que possuíam, contudo, a mesma raiz.
Há um sopro épico na história catalã desta época que é a todos os títulos notável. Pedro III é, por exemplo, duma heroicidade mítica que deve ser comparada apenas à dos heróis da Antiguidade Clássica ou celta. Conta-se que no ano de 1285 para festejar as vitórias políticas e militares no Norte de Africa, o rei decidiu escalar o pico do Canigou, uma belíssima montanha que se avistava de Perpignan, atravessando vales e desfiladeiros. Estávamos em Outubro e as primeiras borrascas começaram a cair, amedrontando os dois cavaleiros que estavam com ele. A neve caiu já de noite, toldando tudo, e de manhã os pulmões magoados respiravam a custo no ar gelado de neve. Pedro acabou por escalar sozinho as escarpas mais altas do Canigou e diz-se que trouxe dum lago a cabeça dum enorme dragão, que semeava o pânico entre os camponeses da região.
Estamos frente ao herói mítico solar que decapita as forças obscuras das trevas. Ora Pedro de Aragão é o pai de Isabel que lhe herdou, em toda a extensão, o génio, espiritualizando mesmo a força de seu pai numa direcção que se mostrou depois surpreendente. A sua força advém-lhe desse poder de espiritualizar a matéria, e quando transformou pão em rosas ou abriu em Aveiro os olhos a uma menina cega, transformando as trevas em luz, nada mais fez do que aperfeiçoar a matéria. Os seus milagres são sobretudo milagres do saber, ou, se quisermos, milagres alquímicos. A crença nos milagres tem uma origem sublime. Resulta dum desejo sobrenatural e não da ignorância desprezível. E por isso que Isabel é um Lúlio feminino que em vez de ouro fez luz. Numa altura em que os melhores pilotos europeus eram catalães ou genoveses, esta mulher foi em Portugal como que um primeiro piloto que nos alertou para o desconhecido. O ignoto que ela adorou era já o mar português. Pela primeira vez, através dela, conquistámos a distância».  
In António Cândido Franco, Memória de Inês de Castro, Publicações Europa-América, 1990.


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